Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Apesar de afetação, Maria Clara Drummond diz a que veio

"Não importa quão bonito seja o entorno, minhas fantasias internas sempre são mais atraentes. A realidade por si só é assustadora", diz Eva, narradora deste segundo livro de Maria Clara Drummond.

Em pouco mais de cem páginas, "A Realidade Devia Ser Proibida" mostra um universo de festas, reuniões "en petit comité" e exposições de arte. Em certo sentido, Eva e seus semelhantes funcionam como uma caricatura de uma juventude privilegiada. Gente instruída, razoavelmente culta, que ostenta Henry Miller ou David Foster Wallace como uma bolsa de grife enquanto transita por galerias e museus –e que, esteja onde estiver, não economiza nas expressões em inglês ou em francês.

Como Eva está inserida nesse contexto, ainda que arrisque um distanciamento irônico, certa afetação do meio vaza para a narração. Não é um defeito, mas cansa.

Divulgação
Maria Clara Drummond, SP, 2015. A escritora Maria Clara Drummond Foto:Divulgacao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
A escritora carioca Maria Clara Drummond, autora de "A Realidade Devia Ser Proibida"

No começo, Eva luta contra seus cabelos ruivos armados. Tem inseguranças absurdas em relação ao próprio corpo. A maior parte das suas preocupações cotidianas soa mesquinha, algo de que ela tem plena consciência. Chega a mencionar "questões pequeno-burguesas" que pareceriam "cruciais para a felicidade".

Drummond trabalha bem a vida interior da personagem. As ótimas divagações de Eva são, sem dúvida, o melhor do livro. Ela reflete sobre os ruídos na comunicação, sua visão parcial dos fatos, os encontros e diálogos que só acontecem na própria cabeça. A realidade em si –as conquistas, as baladas, os atritos com amigos– é, como o jogo do título torna evidente, fraca. Mas o livro, afinal, trata do olhar que Eva deposita sobre o real.

A Realidade Devia Ser Proibida
Maria Clara De Carvalho Drummond
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Na introspecção e inadequação, Eva lembra a Esther Greenwood de Sylvia Plath em "A Redoma de Vidro".

Como muda a geração, mudam as interações e os conflitos. Nesse caso, há a hermenêutica das mensagens de texto "do boy", as atualizações no Facebook, as fotografias do Instagram, as festas regadas a drogas e álcool.

Além de tudo, Eva não consegue diferenciar "um sentimento real" de "uma versão moldada por publicidade", transtorno típico de quem nasceu depois da década de 1980.

Eva amadurece, mas não rompe totalmente com o "ethos" de que tanto desdenha. Perto do fim do livro, quando alguma evolução já pode ser sentida, a protagonista diz que é "uma merda ter que deixar de comprar vestidinho Marni, mas 'c'est la vie'".

Mesmo com a afetação ameaçando transcender a caricatura e se tornar expressão legítima, Drummond, ao contrário da maioria dos autores brasileiros com menos de 30 anos, diz a que veio.

Se focar no que tem de melhor, construindo personagens com uma rica vida interior –que olham para si e para o mundo com espanto, captando bem o momento presente–, promete.

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LEIA TRECHO

"Trancoso é mais caro que Europa esta época do ano, Maria Isabel avisou, é melhor ir se preparando para gastar pelo menos...

A única solução foi passar o resto dos dias sozinha, num canto afastado da praia, longe dos lounges que cobravam fortunas pelas cadeiras, bebendo água com gás e comendo batatas fritas, me martirizando por ter aceitado a viagem, por não ter pensado nos detalhes com antecedência, por ter sido e ser sempre tão boba.

Trouxe na mala alguns desses livros que amaciam o ego se finalizados ou instagramados, mas acabei lendo a coleção de 'Vanity Fair' que fica sob a mesa de centro da sala. Toda manhã, antes de me vestir para sair, olhava no espelho com estranheza: esta sou eu.

Branca, pele de leite, pernas finas demais, cabelos indisciplinados, olhos tão pequenos que mal dá para ver o tom castanho da íris, nariz grande ou é só impressão?, não sei dizer.

Nas fotos do celular de Maria Isabel eu sempre aparecia triste e estranha ao lado de meninas bronzeadas, saradas, sorrisos cheios de gloss, todas de vestido branco solto cheio de furinho e eu ali de tubinho azul-marinho na festa de Réveillon."

A REALIDADE DEVIA SER PROIBIDA
AUTORA Maria Clara Drummond
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 34,90 (112 págs.)


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