Folha de S. Paulo


opinião

Julgamento de O.J. Simpson foi o 1º reality show a conectar o mundo

American Crime Story

Há 20 anos, numa galáxia nem tão distante assim, um programa que passava diariamente na TV norte-americana conseguiu juntar, em seu capítulo final, uma audiência de 100 milhões de telespectadores mundo afora.

Esta humilde datilógrafa que vos fala chegou a tomar bronca do chefe por conta da atração. O tempo em que esteve no ar, eu passei com o focinho grudado na tela e o coração na mão, sem conseguir tocar a vida. Ainda hoje, esse show continua a causar.

O julgamento de O.J. Simpson, transmitido pela televisão, em tempo real, diretamente do tribunal, entre setembro de 1994 até a absolvição de duas acusações de assassinato (da mulher, Nicole Brown Simpson, e do jovem Ronald Goldman) em outubro de 1995 foi, de fato, o primeiro reality show a conectar o mundo, naquele que se converteu no "julgamento do século" do seu tempo.

O processo foi tão cheio de percalços e com tantas intrigas reveladas que, anos depois, em outro julgamento bombástico, o de Michael Jackson, a entrada de câmeras de qualquer tipo foi vetada pelo juiz.

Agora, passadas duas décadas, a Fox TV (via canal FX) montou um projeto refrescantemente original para recontar a história. É levado em conta o fenômeno que contrapõe privacidade e exposição pública –e que nos condicionou a tratar a vida como uma espécie de "O Show de Truman".

Adquiridos os direitos do livro "The People v. O.J. Simpson", de Jeffrey Toobin, o relato mais detalhado da cronologia do caso e suas várias órbitas, e decidido que o seriado seria "American Crime Story", os produtores trataram de contratar o autor da obra, jornalista e advogado que serviu de comentarista do caso na CNN, para ajudar no roteiro.

Depois, a fim de eliminar qualquer vestígio de café requentado para o público que conheça o processo, chamaram um punhado de atores com quem o público está bem familiarizado para viver os personagens da vida real.

John Travolta faz o estrategista do time legal de Simpson, Robert Shapiro. O cinismo que o ator confere ao vaidoso advogado chega a resvalar no deboche, mas cumpre à risca o objetivo de acertar o fígado do telespectador que se acomodar na pele de voyeur.

Cuba Gooding Jr., para variar, errou o tom. Não parece existir dúvida de que O.J. Simpson seja um sujeito violento, do tipo que inspira medo. Não dá para transformá-lo em um galináceo histérico. Devolve o Oscar, Cuba!

David Schwimmer faz Robert Kardashian, o amigão de O.J., que foi advogado no caso ao lado de Shapiro e do folclórico Johnnie Cochran.

IRONIA

Quis o destino que Kardashian ficasse mais conhecido ainda após sua morte, de câncer, em 2003. Por acaso, ele vem a ser o pai da celebridade Kim Kardashian –o que não deixa de ser irônico, posto que estamos tratando aqui de realidade e ilusão na era do selfie.

Aos que não consideram plausível o Ross de "Friends" ser sogro de Kanye West, há o lembrete de que os acontecimentos revisitados em "American Crime Story" tem mais de 21 anos. Ou seja, são do tempo em que a bunda de Kim Kardashian pesava um Kanye (70 "" 80 kg) a menos.

Peraí: estamos tratando da mesma Kim do reality show "Meet the Kardashians"? Será que Kanye West é mesmo casado com ela na vida real?

Mas nós estávamos falando sobre o astro da NFL –a liga de futebol americano–, jovem, negro, ídolo, que casou com uma branca, foi absolvido de assassinato e acabou condenado numa ação cível movida pela família da outra vítima, Ron Goldman, certo?

Ou será que o assunto é a famosa por ser famosa que ficou com o jovem, negro, ídolo...?

Está vendo?

A vigilância 24 horas de lentes de celular e circuitos monitorados faz trocar as bolas.

E, como se a linha já não fosse tênue o bastante, logo no primeiro capítulo de "American Crime Story", na cena climática do enterro de Nicole Brown Simpson, somos surpreendidos pela atriz Selma Blair fantasiada de Kris Kardashian (mãe de Kim, sogra de Kanye, viúva de Robert, o amigo de O.J., e ex de Caitlyn Jenner, que, por sua vez, costumava ser o campeão olímpico Bruce Jenner).

Agora deu nó, não foi? A Selma como Kris é irreal. Pois parece ser esse mesmo o objetivo do FX. Sobrepor uma realidade à outra até desfocar completamente a história original, que era imbatível do ponto de vista dos ingredientes da trama e personagens. E que, assim sendo, deve ficar em segundo plano na cabeça de quem assiste.

Chega uma hora no primeiro capítulo que você acredita que o Leslie Nielsen vai dar as caras na tela. Sim, refiro-me ao ator grisalho de "Corra que a Polícia Vem Aí" com quem O.J. Simpson contracenou quando ainda era um queridinho da América.

Uma América que, hoje, continua atordoada pelos efeitos causados pelo circo em torno de O.J. Simpson.

A tal ponto que não se dá conta de que o episódio marcou a morte da privacidade.

Ou que algumas questões fundamentais permanecem imutáveis, a começar pelo racismo. "Toda vida importa" é o slogan do novo movimento negro estudantil. Mas as imagens de violência policial, a proporcionalidade de não brancos cumprindo penas e os números do aumento da desigualdade parecem não endossar a afirmação.

Qual o papel do espetáculo em uma cultura obcecada pelo sucesso? Esse é o tipo de pergunta cuja ressonância se faz sentir até aqui.

Quer ver mais uma dessas?

A que grau de manipulação política está exposta uma corte que abre as portas para os holofotes –hein, Joaquim Barbosa? E tome esta para fechar: atletas, atores ou mesmo juízes (não é mesmo, Sérgio Moro?) devem ser exaltados como heróis?

Pistas? Assista ao seriado.

AMERICAN CRIME STORY
Exibição do seriado
QUANDO qui., às 22h30, no FX


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