Folha de S. Paulo


Artistas aposentam imagem do cabra macho e reafirmam sertão sofisticado

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Cena do filme 'Boi Neon', de Gabriel Mascaro
Cena do filme 'Boi Neon', de Gabriel Mascaro

Um boi que brilha no escuro invade a arena do rodeio. Entre uma e outra acrobacia dos caubóis, uma mulher vestindo máscara de cabeça de cavalo sensualiza ao som de música eletrônica para uma plateia cheia de homens.

Eles são cactos sem espinhos, jagunços sensíveis, com uma queda por estilo. Na nova imagem do Nordeste que aparece em "Boi Neon", filme de Gabriel Mascaro agora em cartaz, mas também em coleções de moda, obras de arte contemporânea e design, é como se o velho cabra macho estivesse marcado para morrer.

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Essa reinvenção da imagem nordestina em várias frentes da cultura coincide com o centenário do mito em torno de Lampião e seu bando -o célebre líder cangaceiro que aterrorizou o sertão, aliás, foi exímio costureiro.

Virgulino Ferreira da Silva, morto já famoso como Lampião aos 40, em 1938, deu os primeiros passos de sua aventura de assassinatos, saques e assaltos em disputas de terra pelo sertão em 1916, data do primeiro tiroteio entre sua família e a de um rival, marcando o início da era do cangaço.

Um personagem complexo, temido e adorado, Lampião também entrou para a história pelo grande senso estético. Seus chapéus, coletes, cartuchos de balas, daqueles trançados sobre o corpo, viraram símbolos de distinção, contrariando já em seus primórdios a ideia de um Nordeste rude e sem sofisticação.

"Lampião percebeu que esse apuro com a roupa seria motivo de orgulho dos seus comparsas. Ele começa a pensar na simbologia dessa estética, como a cruz de malta e a flor de lis, as mais famosas", lembra o historiador Frederico Pernambucano de Mello, um dos maiores especialistas na linguagem visual nordestina.

"Esse interesse da cultura pela estética do cangaço começou muito antes", afirma. "Mas essa aproximação sempre foi mambembe, ia e voltava. Agora, estamos no grande revival desse conteúdo."

Tanto que Mello vem sendo procurado por artistas na hora de recriar um Nordeste menos estereotipado e mais em sintonia com a modernização de seus valores estéticos. Há 20 anos, o historiador ajudou a conceber "Baile Perfumado", filme de Lírio Ferreira e Paulo Caldas que reconduziu essa região aos holofotes, e agora trabalha com o fotógrafo Márcio Vasconcelos num novo livro.

Mas, de "Baile Perfumado" a "Boi Neon", houve uma metamorfose. No cinema e na arte, as imagens de um Nordeste miserável, vazio e estorricado, além da fama do cabra macho rude, entraram em crise.

Enquanto Gabriel Mascaro mostra caubóis delicados em seu filme, preocupados com perfumes e cabelos, Jonathas de Andrade também revisou a imagem do homem nordestino em pôsteres que mostram trabalhadores do Recife como garotos-propaganda do Museu do Homem do Nordeste.

Na superfície, seus cartazes com homens de pele escura e mãos fortes parecem se encaixar no estereótipo da região. Na visão do artista, no entanto, sabotam esse clichê ao erotizar e exagerar o que seria a virilidade nordestina.

"É discutir o machismo a partir do erotismo do próprio machismo", diz Andrade. "O olho se trai com uma coisa que parece aquilo, mas não é."

Nas ruas do Nordeste atual, pós-boom econômico dos anos Lula, existe outra traição. "A palavra Nordeste é uma abstração, não deveria dar conta de forma totalitária da identidade de um lugar", diz Mascaro. "Mas o curioso é o descompasso forte que o cotidiano nas ruas oferece como fissura desse imaginário."

Na opinião do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, autor de uma série de estudos sobre a imagem do Nordeste, essa fissura tem a ver com a consolidação de uma nova realidade local.

"Não é coincidência que quando o Nordeste se urbaniza vem a contestação dessa figura rústica", afirma. "Uma imagem clássica é que o nordestino se parece com um cacto, uma projeção da natureza da região. É o mito compensatório do cabra macho. Somos pobres, mas somos machos, enquanto homens do Sul são efeminados pela cidade. Esse discurso é usado em confrontos e disputas regionais. Esse Nordeste foi inventado."

COURO CRU
E agora é reinventado. Usando o bordado delicado de Espedito Seleiro, artesão cearense que já emprestou seu trabalho a grifes como Cavalera, Cantão, Ronaldo Fraga e Farm, os irmãos Fernando e Humberto Campana acabam de lançar uma linha de móveis inspirada na estética do cangaço.

"Não é que se queira hoje reimaginar ou inventar o sertão", diz o designer Fernando Campana. "Mas queremos criar um 'gap' menos profundo e distante entre a nossa realidade sulista e a do Nordeste."

Seleiro, aliás, parece ser uma peça-chave na redução desse abismo. Filho do artesão que confeccionou a emblemática sandália retangular de Lampião -a encomenda partiu de um desenho feito pelo próprio Virgulino-, ele diz que há tempos produz para o "pessoal de fora", além de ter conseguido desenvolver uma estética própria reformulando a do cangaço.

"Quando comecei, muita gente não via beleza no couro cru", diz o artesão. "Mas me obriguei a tingir e a criar um estilo. Consegui divulgar o sertão e só vivo dele hoje em dia."


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