Folha de S. Paulo


Em livro, sociólogo esmiúça relação cheia de vaivéns entre sexo e cinema

O casal se beija, troca carícias e cai na cama –os dedos de um roçam a roupa do outro.

Corta para a manhã.

Os dois estão enrolados nos lençóis imaculados, cabelo impecavelmente penteado.

Os bastidores dessa elipse, recheada de pelos, arfadas e fluidos, recheiam a história que o sociólogo paulista Rodrigo Gerace, 35, traça em "Cinema Explícito", obra que envereda pela ruidosa trajetória do sexo nos filmes.

É um percurso cheio de vaivéns, que começa em centenários curtas obscenos, tem uns pruridos de castidade no meio do caminho, reabre em êxtase revolucionário, se recolhe no armário, transa com a violência e, hoje, deságua numa saturação de hiper-realismo.

"Ninguém faz sexo implícito", diz Gerace. "Mas em muitos filmes se pula direto da insinuação para o café da manhã, confinando o sexo explícito à pornografia. Eu queria entender o porquê disso."

A explicação, como aponta o livro, não é tão óbvia: a adaptação cinematográfica de "Cinquenta Tons de Cinza" (2015) se mostrou quase frígida de tão pudica. Já a ejaculação tridimensional de "Love" (2015), de Gaspar Noé, não teve pudores e foi exibida até em cinemas da avenida Paulista.

'PORNÔ SOFT'

A história do sexo no cinema, diz o autor, é a história da própria censura a ele nos filmes: "O Beijo" (1896) traz a primeira cena de lábios se roçando e provocou clamor em jornais, ainda que esse gesto fosse reproduzido no teatro.

"O escândalo foi vê-lo na estética cinematográfica, em 'close-up', recurso que não havia nos palcos", diz o autor. "Não é a carga sexual que dá o tom transgressor ao filme, mas o contexto em que está."

O surrealista "Um Cão Andaluz" (1929), de Luis Buñuel, por muito tempo foi relegado à prateleira dos obscenos. A metáfora, ali, é clara: "o personagem ejacula pelas expressões da cara", afirma Gerace.

Nos anos 1930, Hollywood, encravada na então Cidade do Pecado, encareta: o Código Hays moraliza as produções e sublima o sexo até a década de 1960, quando a contracultura o bota de novo em cena.

A abertura faz desabrochar o pornô soft de "Garganta Profunda" (1972) e "Emmanuelle" (1974), borrando o limite entre o fetiche machista e a ascensão feminista inculcada nas protagonistas. Os anos 1980 retrocedem: a Aids embutiu uma pecha no sexo. Foi quando surgiram serial killers trucidadores de pós-adolescentes em início de sua vida sexual.

"A onda reacionária não soube lidar com a doença e criou metáforas horrorosas." Pelas beiradas, o movimento New Queer Cinema de Gus van Sant e Todd Haynes floresce trazendo a questão gay.

Nos anos 1990, uma reabertura: a pornografia sai de pulguentos cinemas e entra na casa de todos a reboque do "home video". O que não é pornô o incorpora, especialmente em filmes de arte. Vêm a orgia explícita de "Os Idiotas" (1998), de Lars von Trier, e os encontros tórridos de "Intimidade" (2001), de Patrice Chéreau.

O autor também discute a distinção entre erótico e pornográfico, ou melhor, a falta dela: "A diferença está atrelada ao mercado, ao que é tido como permitido, já que ambos falam do mesmo assunto."

E o que seria sexo transgressor no cinema nos dias de hoje? "Teria de romper algum tabu porque o explícito já não gera escândalo, saturou."

Ele arrisca uns palpites: na sociedade da vigilância, uma busca pelo espontâneo.

"Ninfomaníaca", de Von Trier, teve de atrelar o explícito a uma confissão da personagem: "É quase casto, moralizado", diz Gerace. Já "Love", o da ejaculação em 3D, "fica só na superfície", diz. "É quase um papai e mamãe."

CINEMA EXPLÍCITO
AUTOR Rodrigo Gerace
EDITORA Edições Sesc/Perspectiva
QUANTO R$ 72 (320 págs.)
LANÇAMENTO 25/2, às 20h, no CineSesc (r. Augusta, 2.075, tel. 11-3087-0500)

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LIBERTINO
As fases do sexo no cinema

PRELIMINARES
O sexo no cinema nasce com o próprio cinema: se o que fascinava nos primeiros filmes era o movimento, não tardou para que diretores como Kirchner e Edison botassem corpos para se movimentar nas primeiras películas eróticas
» "The Kiss" (1896), de William Heise, e "Sandow: Strong Man" (1894), de Thomas Edison

SEM GEMIDOS
A partir do começo do século 20 popularizam-se os "stag films", pequenos curtas mudos que traziam cenas explícitas com propósitos pornográficos. Já no "mainstream", o erotismo se dava em beijos, olhares e silêncios
» "A Free Ride" (1915), de A Wise Guy, e o argentino "El Satario" (1907), de diretor anônimo

CINTO DE CASTIDADE
Na década de 1930 entra em vigência o Código Hays, que impôs uma série de repressões ao sexo nas três décadas seguintes e estimulou o simbolismo das relações: o beijo no fim do filme substitui a penetração; o sexo só floresce no "underground"
» "Drácula" (1931), de Tod Browning

REVOLUÇÃO SEXUAL
A contracultura dá gás para produções mais explícitas a partir dos anos 1960, parte de uma revolução dos costumes mais ampla e encampa as causas de minorias: orgasmo não é só prazer, é um ato social; o pornô vive fase áurea
» "Emmanuelle" (1974), com Sylvia Kristel e "Garganta Profunda" (1972), com Linda Lovelace

SEXO DOENTE
A Aids e os governos de direita dos anos 1980 empatam a transa no cinema e o sexo é associado a doença nos filmes do "mainstream", lotado de serial killers de jovens saidinhos à la "Sexta-Feira 13" e de femme fatales com "Atração Fatal"
» "Atração Fatal" (1987), de Adrian Lyne

SADOMASÔ
A partir de meados dos anos 1990, a pornografia se populariza graças ao "home video" e o sexo explícito volta com carga aos filmes americanos e europeus, mas associado à violência, à melancolia, alçado como metáfora política
» "De Olhos Bem Fechados" (1999), de Stanley Kubrick, e "A Professora de Piano" (2001), de Michael Haneke

SEM FINGIR
Hoje, enquanto ocorre uma saturação de imagens de sexo graças à internet, o pornô flerta com o espontâneo, ou a ilusão de espontâneo, e o cinema de arte busca um hiper-realismo que borra as fronteiras com o explícito
» "Azul É A Cor Mais Quente" (2013), de Abdellatif Kechiche, "Ninfomaníaca" (2013), de Von Trier, "Os Sonhadores" (2003), de Bernardo Bertolucci e "Love" (2015), de Gaspar Noé


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