Se alguma vez o jazz alcançou o pico mais alto da arte foi com o disco "A Love Supreme", gravado em 1964 e lançado em 1965 pelo saxofonista John Coltrane (1926-1967). Coltrane ainda é um deus para os seus fãs, e não à toa foi canonizado de verdade pela Igreja Africana Ortodoxa (numa de suas últimas entrevistas, no Japão, ele previu que viraria um santo).
Coltrane também ganhou um prêmio Pulitzer póstumo, em 2007, pela sua "improvisação de mestre, suprema musicalidade e centralidade icônica na história do jazz". A casa em que ele passou os três últimos anos de vida, em Dix Hills, Nova York, é considerada um lugar histórico, e por isso foi salva da demolição. Lá ele concebeu "A Love Supreme", o passaporte para todas essas glórias.
O disco é uma viagem musical virulenta, de uma alegria sobrenatural, rumo a alguma coisa que poderia ser chamada de deus, não tivesse o próprio músico declarado que acreditava em todas as religiões. "A Love Supreme" é, para muita gente, uma religião.
No caso do desenhista italiano Paolo Parisi, acostumado a trabalhar com capas de discos e motivos musicais diversos, a história de Coltrane precisou ser tratada com a ousadia e os improvisos do mestre. Foi o que ele fez nos quadrinhos de "Coltrane", uma biografia caleidoscópica, em preto e branco, baseada nos fatos mais importantes da vida do santo do jazz.
Parisi não se acomodou ao mito. Trabalhando com capítulos -quatro, cada um deles nomeado como uma das partes de "A Love Supreme"-, o desenhista construiu uma estranha biografia musical sem música.
Tudo o que importa está ali: a infância pobre na Carolina do Norte (numa cidade de nome shakespeariano: Hamlet); a afinidade com experimentações musicais muito além do seu tempo; os encontros com Dizzy Gillespie, Miles Davis e Eric Dolphy, de quem foi o melhor amigo; as gravações de "A Love Supreme"; o vício em heroína, do qual saiu com uma espécie de revelação; os músicos com quem tocou; as mulheres com quem casou.
Escute o disco 'A Love Supreme'
São duas, sendo a mais importante aquela que herdou seu sobrenome, Alice Coltrane (1937-2007), uma pianista de grande talento e inventividade. No meio disso tudo, Coltrane ainda assiste ao último discurso de Malcolm X.
Os quadrinhos de Parisi contam a vida do saxofonista numa ordem cronológica fora de ordem, como se a trilha sonora fosse a música divinamente selvagem de John Coltrane. O resultado final não é para muitos, a não ser que você aceite mergulhar com a intuição e a trilha sonora de "A Love Supreme" na história do santo do jazz. Se fizer isso, valerá a pena.