Folha de S. Paulo


análise

Baile 'africano' da 'Vogue' apenas escancara olhar caricato da moda

Divulgação
Valentino Spring 2016 Campaign shot in Amboseli Park in Kenya. Campanha da grife Valentino clicada na Ãfrica. A maioria das modelos eram brancas e as imagens mostram um estereótipo do continente CREDITO: Reprodução ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Imagem da campanha lançada em janeiro pela grife italiana Valentino, cujas fotos foram feitas no Quênia

"O 'goldface' (cara dourada) é o novo 'blackface' (cara preta)", cravou uma colega jornalista ao ver as fotos do baile da revista "Vogue", que aconteceu na quinta-feira (28) num hotel de luxo em São Paulo. Ela se referia ao bronze alaranjado das mulheres vestidas com penas, animal print, tranças e cabelo enriçado na festa África Pop, uma "homenagem" fashion e branca ao continente negro.

Mas não foram apenas a pretensiosa negritude dourada de Valesca Popozuda e Grazi Massafera e a questionável falta de convidados negros que chamaram a atenção da patrulha virtual.

O entendimento dos presentes sobre o continente e seus códigos de vestimenta é caricato e representa a ponta do iceberg de uma discussão que se arrasta há algumas temporadas no meio da moda: a da apropriação cultural.

A cabeça de leão usada como ornamento por uma das socialites e o ondulado falso da atriz Suzana Pires são tão preocupantes quanto as modelos brancas da última campanha da grife Valentino.

Lançadas em janeiro, as fotos no Quênia mostram moças da cor do leite usando vestidos com motivos étnicos numa paisagem desertificada, pobre e com mulheres negras de roupas tradicionais, bem diferentes das que se veem nas grandes cidades africanas.

Amplamente criticadas na internet e endeusadas pela crítica, as imagens mostram a europeização da estética afro, espécie de crivo da moda ao que lhe é diferente, ou, para citar uma palavra ainda mais perigosa empregada no círculo fashion, "exótico".

Diferentemente do japonismo, corrente iniciada nos anos 1980 por estilistas orientais, não é o olhar dos africanos sobre a sua própria indumentária que é posto na passarela. No caso da Valentino, é a releitura dos estilistas Maria Grazia Chiuri e Pierpaolo Piccioli que saltará em editoriais e no guarda-roupa da elite branca.

Você conhece alguma marca de estilista africano? No seu guarda-roupa "étnico", multicolorido e tribal, há etiquetas "made in Moçambique"?

No desfile da Valentino, realizado em outubro de 2015, em Paris, também houve poucas modelos negras e várias brancas com tranças, as mesmas usadas pela blogueira Camila Coelho e a apresentadora Astrid Fontenelle no baile de carnaval de quinta-feira.

Cabelos entrelaçados e "black power", moda no último ano, simbolizaram nos anos 1960 a luta dos negros americanos por direitos civis. A cabeleira, então, seria sinônimo de um inconformismo que, para os afrodescendentes, não cabe na cabeça de quem nunca sofreu racismo.

Esse mesmo tipo de "deferência" foi feita pela carioca Osklen, em 2011, quando colocou menos de dez modelos negras para desfilar uma coleção que "homenageava" a ascendência africana do brasileiro. À época, uma possível falta de modelos no mercado lhe serviu como desculpa.

Homenagens são artifícios de marketing perigosos. Pense na hipótese de o Brasil ser homenageado por alguma grife do hemisfério norte. A cena: mulheres longilíneas dançando samba com abacaxis na cabeça e roupas de chita.

Qual é o problema? Afinal, é apenas uma homenagem.


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