Folha de S. Paulo


'A maior função da televisão é criar cidadãos', diz Luiz Fernando Carvalho

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Velho Chico ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Rodrigo Santoro em um intervalo da gravação da novela "Velho Chico" em São Francisco do Conde (BA)

Em 2014, após 12 anos realizando minisséries, seriados e especiais ("Capitu", "A Pedra do Reino" etc.), Luiz Fernando Carvalho voltou às novelas com "Meu Pedacinho de Chão", produção para as 18h.

Na sequência, emendou a série inédita "Dois Irmãos", inspirada no livro homônimo de Milton Hatoum. A decisão de retornar ao folhetim das 21h, diz o diretor, tem uma razão maior: continuar a obra de Benedito Ruy Barbosa.

Para ser fiel ao texto de "Velho Chico", que se passa no Nordeste, Carvalho grava na região o maior número possível de cenas. "Não acredito numa realidade nordestina imitativa. A teledramaturgia precisa retomar o diálogo com a brasilidade, com a dimensão do país."

Leia a entrevista:



Folha - Qual será a principal história de "Velho Chico"?
Luiz Fernando Carvalho - Se fosse resumir tudo em uma única palavra, diria: amor. O tema do amor ligado a uma espécie de ocupação do país, ocupar questões que foram abandonadas. É o amor de um homem por uma mulher, o amor pela terra, o amor pelo rio, por um sonho de um país melhor. Em termos de linguagem, o desafio é alçar a história e personagens a uma dimensão de afetos mais fortes. Há um espaço vazio na TV brasileira, uma ideia de que ficou brega se emocionar, falar de sentimentos.

A volta de Benedito às novelas, aos 84 anos, levantou o debate de que não há renovação de novelistas...
Esse gesto [de trazer o Benedito] diz muita coisa, sim. Necessariamente não precisaria ser o Benedito. Onde estão os novos Beneditos?

Você fala em retomar o diálogo com a "brasilidade". Qual sua concepção desse termo?
É o conjunto das contradições, complexidades dos Brasil. De uma certa modulação entre os temas, os horários, entre o Rio, o Nordeste, o Sudeste, o Sul, o Centro-Oeste. Existem muitas regiões e temas abandonados pela teledramaturgia.

Quais temas ainda são pouco trabalhados na TV?
O Brasil é feito de muitos universos, muitos Brasis. A TV está entrando num momento de maturidade para poder encarar esses temas, encarar esse país nas suas contradições. Veja, por exemplo, o momento que vivemos na política, de paradigma. Tudo está rachando, vindo à tona, mas consequentemente isso tem que gerar alguma coisa, avançar o país. Esperamos que avance inclusive em temas sobre o país, a poder falar melhor disso na teledramaturgia, nos romances, no teatro, no cinema. A função maior da TV é criar cidadãos, além de formar espectadores.

Vê então função social na TV?
Totalmente. A função estética é filha da função ética. Não existe o belo só pelo belo. Aí é um comercial de geladeira. Quando a TV atinge essa função estética, necessariamente dá as mãos para sua responsabilidade. O belo, o bom texto, a boa imagem, a boa música são elementos fundadores de um país. E consequentemente são elementos educativos, mas através da emoção.

Não olhar para o país como um todo é um dos motivos para as audiências em queda?
Não tenho dúvida. Isso é medido cientificamente através de pesquisas. A falta de modulação entre as histórias do eixo Rio-SP e as do resto do país, um continente todo que não tem voz, digamos assim, faz com que o espectador dessas regiões se identifique menos. O texto necessariamente, quando é desse eixo, vai exigir uma qualidade humana universal.

De que maneira abordarão a transposição do Rio?
Acontecerá na segunda fase. Há personagens contra e a favor, sem tom demagógico. A questão hídrica agora é preponderante para o país porque faltou água na torneira do paulista. Mas falta água na torneira do sertanejo há décadas. É um pano de fundo que está convergindo para os interesses da população nesse momento. É uma grande fábula do subterrâneo. O subterrâneo é onde está a água, o inconsciente coletivo, o primitivo, o próprio país que está sob circunstâncias obscuras.

"Velho Chico" virá então nesse momento interessante do Brasil, de quebra de paradigmas?
O Brasil está convergindo para esse tipo de pensamento, de ter coragem de se olhar, de perceber suas precariedades, suas riquezas, como é o próprio sertão. Ele é ao mesmo tempo precário, muito abandonado, muito cheio de políticas abandonadas, mas ao mesmo tempo é uma potência cultural flamejante, de beleza, de artistas, de músicos, de escritores. Basta ver a geração de literatura que está ligada a ele.
É um país que quando você não inclui esse país na totalidade dentro de uma TV, você de uma certa forma desperdiça o próprio país.

Acha interessante voltar a dirigir uma novela das 21h?
Eu não separo isso é novela, isso é minissérie, seriado. O meu trabalho não modifica em nada. Eu passo pelas mesmas questões, pelas mesmas dúvidas. Eu sou carregado de dúvidas, não tenho regras para nada. Acho que essa é a função do diretor, dar uma resposta ao texto, é um ato de reação emocional, estética, humana, artística ao texto. Não é uma simples representação, uma simples produção texto. Se a cena fala que o cara tá sentado, bota o ator sentado. fala que tá tomando suco de laranja, bota um copo de suco. Eu não trabalho dessa forma desde sempre.

Caiua Franco/Globo
Velho Chico ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Luiz Fernando Carvalho orienta Marina Nery e Rodrigo Santoro na gravação da novela "Velho Chico"

Há uma cobrança por maior audiência nesse horário. Como lida com isso?
Eu lido de maneira tênue. Sou velho já (risos). Ao mesmo tempo as minhas duas únicas novelas como diretor-responsável, "O Rei do Gado" e "Renascer", são talvez os dois grandes sucessos da década em que passaram. Isso me falam, e eu digo: que bom. Eu realmente não me apego a isso na primeira instância. Me apego na conexão com o texto, com o país, com o que imagino que o país esteja desejando ver, e imagino que esteja desejando as grandes histórias, os grandes romances no sentido literário, de ler um romance. Imagino que o espectador está carente nesse momento por esse tipo de conversa. De assistir à alguma coisa que converse muito com ele. E que ele goste muito desse papo, de conversar por um longo período. Fico pensando em que elementos colocar nessa conversa, em que roupa, em que atores. Como renovar o elenco da própria Globo com atores novos, deslocados de seus códigos habituais. Fico pensando nesse conjunto todo que pode oferecer para o espectador uma fabulação interessante, que vá mexer com o imaginário dele, que faça ele dizer: 'tô a fm de ver esse negócio, apesar de internet, de rede social.

Em 2015 houve grande discussão se deveria ou não ter beijo em uma novela, falou-se em uma audiência reacionária.
Acho que esse discurso é reacionário. Me incomoda esse discurso de tachar o Brasil de reacionário e a audiência de reacionária. Acredito que tudo depende de como você faz a coisa. Talvez ali [na novela "Babilônia"] tenha faltado alguma coordenada, entende? Não é o beijo em si que incomoda. Imagina... o povo, o homem mais simples, mais comum, mais pobre, de periferia, ele está muito mais ligado a essas questões sexuais, de gênero. O vizinho dele é um transformista, o filho da vizinha é gay. Eles convivem de uma forma muito mais harmoniosa do que preconizam os especialistas em teledramaturgia. Não é por falta de conhecimento do povo em relação a esse tema, eles lidam com o tema diariamente. O que pode causar alguma rejeição, no meu modo de ver, é a forma. Tem muita emoção em uma mãe que fala para um filho que quer mudar de sexo: 'Ok, vá operar, vou trabalhar para você conseguir ser mulher, meu filho'. Olha que tema incrível, que personagens incríveis, olha que drama humano incrível. Isso faria o país se debulhar em catarse. No fundo no fundo, eu acho que [o problema] é sempre a estrutura, o subtexto, não o texto. E não subestimar o público, o público não é bobo, o público não é preconceituoso. Se você apresentar aquilo de forma dura, fria, sem os dois lados da questão, sem uma boa dose de humanidade...

Você busca sempre uma renovação de linguagem em seus trabalhos?
Acho que nunca é de fora para dentro. É um sentimento que vira uma forma, e a forma é a coisa mais sublime. Você às vezes atinge uma forma, nisso que está chamando de renovação da linguagem, mas às vezes você não atinge, só está buscando. "Velho Chico" é uma espécie de redescobrimento das raízes que formam o povo brasileiro. Essas misturas existem nos personagens, o negro, o índio, o caboclo, o branco português, o italiano. A Encarnação (Selma Egrei) eu localizei ela no barroco porque os sertanejos do início do século passado tinham uma sofisticação incrível, eram figuras de grande poder europeu. Foram os ibéricos que vieram para cá que trouxeram música, em contraponto tem os índios que se misturaram com os caboclos, com os negros. Não tem como falar de Brasil sem acreditar nessa potência, nessas misturas desses povos. Numa certa perspectiva atemporal, a sensação é de que muita pouca coisa mudou em relação a um negro e o contexto dele, muito pouca coisa mudou em relação à elite e o que ela pensa em relação ao contexto em volta dela, essas questões são vistas por mim como arquétipos. E esse arquétipos da elite, do povo, dos excluídos, me interessam como diretor.

A jornalista viajou a convite da Globo


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