Folha de S. Paulo


Enfrentando doença degenerativa, Ricardo Piglia lança memórias

Ricardo Piglia tinha 16 anos e levava uma feliz vida de adolescente suburbano em Adrogué, na província de Buenos Aires, quando, subitamente, seu pai tomou a decisão de mudar-se dali. Peronista, dom Piglia tinha se metido numa disputa política local que ameaçava a paz de sua família naquela cidade.

O jovem Ricardo, inconformado, sentado no banco de trás do carro, ficou arrasado por ter de deixar os amigos.

Wilson Melo - 30.ago.1994/Folhapress
O escritor argentino Ricardo Piglia

"A viagem foi para mim uma travessia para o desterro. Eram apenas 400 km até Mar Del Plata [onde a família se instalou], mas eu estava deixando para trás toda uma forma de vida. Foi um rito de passagem. Soa como um exagero, mas as experiências decisivas surgem para nós como exageros. O que importa nos fatos é a intensidade que atribuímos a eles", diz o escritor em entrevista à Folha.

As dificuldades para se adaptar à nova cidade lançaram Piglia numa viagem interior. Começou, então, a escrever um diário, que mantém até hoje e já ocupa mais de 327 cadernos de anotações, guardados em 40 caixas.

"Foi o começo da literatura para mim. Se não tivesse começado a escrevê-lo naquela época, não teria escrito mais nada depois", explica.

INÉDITOS

Desde aquele longínquo 1957, Piglia, hoje aos 74, estava determinado a manter esses escritos pessoais inéditos. Há alguns anos, soltou partes no jornal espanhol "El País". Estava experimentando a ideia de torná-lo público quando soube que sofre de esclerose lateral amiotrófica, uma doença degenerativa que vem limitando sua capacidade de trabalho.

Imediatamente, foi acometido por um entusiasmo de produção. O primeiro volume das memórias, reeditadas e com intervenções, chega às livrarias na Argentina e em outros países de língua hispânica (sem previsão para o Brasil). Com a ajuda de uma assistente, Piglia dá forma, às pressas, aos dois volumes que completam a série.

Os livros saem com os títulos de "Los Diarios de Emilio Renzi", nome de seu alter ego, presente em obras como "Respiração Artificial" e "Alvo Noturno" (ambos publicados aqui pela Companhia das Letras). Piglia afirma que usa esse recurso porque "é preciso dar uma reviravolta irônica às intimidades".

O escritor preferiu não trabalhar com suas anotações em uma ordem cronológica rígida. "Escolhia os cadernos ao acaso e os copiava. A vida é mais fácil de se levar adiante se é fragmentada e aos saltos. Há uma pulsão à la Proust de entrar e sair do tempo recuperado. As notas manuscritas e datadas foram minha 'madeleine' e minha máquina do tempo", resume.

Paralelamente ao lançamento do primeiro volume, veio a público "327 Cuadernos", documentário de Andrés Di Tella. O filme traz o autor lendo, nos dias de hoje, passagens de suas anotações desde a adolescência, misturadas a imagens da conturbada história argentina desde então –ditaduras militares, os governos de Juan Domingo Perón (1895-1974).

"Desde que ficou doente, e inclusive desde que já não podia mais escrever sozinho, Piglia começou a trabalhar como nunca. Além da edição dos diários, terminou um livro de ensaios ['Las Tres Vanguardias'], colaborou no documentário, e não me surpreenderia se estiver trabalhando em alguma outra coisa", diz à Folha Di Tella –cujo filme deve ser exibido no Brasil neste semestre.

TENACIDADE

Para o amigo e escritor Edgardo Cozarinsky, "a doença costuma ser um motor para a criatividade. Há alguns meses, Ricardo me disse: 'Não me sinto doente. Meu corpo está doente'". Cozarinsky conta que se impressionou com seu método de trabalho: "A saúde já o obriga a ditar por várias horas diárias, e ele o faz com uma tenacidade exemplar. É uma vitória da vitalidade contra obstáculos que pareciam fatais."

Piglia diz que o filme jogou outra luz aos escritos. "O diário foi o motor de toda minha escritura. Mas não é a mesma coisa escrever sobre algo pessoal e ser filmado falando disso. A exposição fazia com que fosse difícil referir-me ao que estava nos cadernos. Essa tensão dá interesse ao documentário."

Nas últimas semanas, o autor voltou aos noticiários por enfrentar seu plano de saúde, que se recusava a cumprir uma determinação da Justiça e oferecer tratamento com uma nova medicação, o GM604. O convênio alegava que a droga estava em fase de teste e por isso recusava-se a bancar o valor de cada dose, de US$ 120.000 (cerca de R$ 480.000).

Foi aí que o artista Roberto Jacoby iniciou a um abaixo-assinado para pressionar o convênio. Em poucos dias, alcançou mais de 80 mil assinaturas e o plano cedeu. A esclerose lateral amiotrófica não tem cura, mas um bom tratamento pode retardar os efeitos.

Para Piglia, pode significar o tempo que precisa para completar o legado que quer deixar como um dos escritores essenciais da literatura latino-americana contemporânea.


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