Na cenografia que avança por salas, corredor e cozinha do apartamento térreo, quase uma casa, a imagem surge no espelho no lavabo: radiografias da coluna de Renato Borghi, toda coberta de pinos e rebites de titânio.
O célebre ator, que completa 79 anos em março, vem de operações que o deixaram sem andar por semanas. Como Hamm, seu personagem em "Fim de Jogo", estreia nesta quinta (14), em sua própria casa –com as devidas liberações do condomínio do edifício Santa Terezinha aos herdeiros do autor irlandês Samuel Beckett (1906-89).
Os problemas de saúde, que o fizeram atuar em cadeira de rodas em "A Gaivota" no início do ano passado, não terminaram: Borghi voltou a andar, mas toma analgésicos todo dia para suportar a dor constante e talvez enfrente uma terceira cirurgia.
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| Radiografia da coluna de Renato Borghi, de 2014, que mostra os pinos inseridos na vértebra do ator |
"Primeiro foi listese [escorregamento de vértebra], depois estenose [estreitamento do canal lombar], depois uma vértebra rachou e uma farpa entrou na medula, aí eu perdi a perna", vai relatando. E agora seu corpo, diz ele, sorrindo com a ironia tão conhecida dos palcos, "range".
"Fim de Jogo", de 1958, traz uma dupla beckettiana, o velhote Hamm (de "hammer", martelo em inglês), "meio cego e paralítico", e seu empregado ou afilhado Clov (de "clou", prego em francês), interpretado por Élcio Nogueira Seixas, 43 –que há 20 anos divide com Borghi o grupo Teatro Promíscuo e o apartamento na Alameda Santos, próximo à Paulista.
Durante meses, os dois reproduziram sem querer a relação de Hamm e Clov. "Eu fiquei muito dependente do Élcio, 'Chega a cadeira para a direita, não, está demais, esquerda'. Fiquei impaciente, com muita dor. E o Élcio falou, um dia, 'A gente está vivendo o 'Fim de Jogo'."
| Lenise Pinheiro/Folhapress |
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| Élcio Nogueira Seixas (à esq) e Renato Borghi durante ensaio de 'Fim de Jogo', de Beckett |
Seixas lembrou ter dito então, também com humor mórbido, gênero associado ao próprio Beckett: "Se não voltar a andar, pelo menos essa peça você pode fazer". Borghi, em meio à entrevista na cozinha da casa, soltou uma longa gargalhada.
A montagem vem daí, mas também da desesperança no Brasil de hoje. "Agora o Apocalipse é isso aí, no país, essa falta de saúde, de educação, todo mundo egoísta pensando em como vai se salvar", afirma Borghi.
O cenário de "Fim de Jogo", pelo isolamento e até pelas restrições físicas enfrentadas por todos os personagens, é pós-apocalíptico, quase uma ficção científica –ou pelo mesmo é assim que a peça costuma ser montada. Os atores, junto com a diretora Isabel Teixeira, encontraram outro Beckett.
Em uma primeira leitura, os dois se viram rindo sem parar e é essa comédia que eles querem que o público descubra também, agora. "A gente achou muito engraçada, fiquei até preocupado, nunca tinha visto a peça como comédia", diz o ator.
| Lenise Pinheiro/Folhapress | ||
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| Os atores Élcio Nogueira Seixas (sem camiseta) e Renato Borghi (camiseta vermelha) |
Antes de se decidir, falou com o amigo Zé Celso, com quem criou o Oficina em 1958 –assinando o contrato de aluguel do teatro na mesma casa onde faz a nova peça. E ouviu dele a mesma opinião: "Fim de Jogo" é, sim, "uma comédia maravilhosa".
Aliás, lembrou Borghi, apresentar teatro em residência não é novidade para ele. Foi levando espetáculos para "as casas dos grã-finos no Pacaembu" que os dois e outros arrecadaram o bastante para reformar o Oficina. "Entrava pela porta de serviço e saía pela porta de serviço, recebia o dinheiro na cozinha", diz o ator, sarcástico.
A ideia inicial para "Fim de Jogo" era um pouco diferente. Eles queriam levar uma plateia de 30 para um palco, em busca de intimidade, "mas ninguém aceita mais, os teatros querem que você alugue com a casa toda, para terem receita". Já nos primeiros ensaios de mesa, a diretora propôs fazerem lá mesmo e os dois aceitaram.
"Essa casa é estimulante para mim, é testemunha de tudo, leituras de Brecht, o Promíscuo pintou aqui. Antes foi dos meus pais. Na primeira vez em que entrei aqui, foi gritando, 'Ganhei!'. E a minha mãe, 'O que foi?'. 'Ganhei o teste do Sérgio Cardoso para fazer o protagonista de Chá e Simpatia no Rio'."
Foi a sua estreia profissional, também em 1958, no teatro do Copacabana Palace, ao lado de Nydia Licia. Rindo, imita a voz grave do ator Sérgio Cardoso, diretor daquela primeira peça, no teste: "Você quer fazer teatro profissional? Você tem certeza?".
Já mortos, os pais de Borghi são lembrados, em foto, como os outros dois personagens de "Fim de Jogo", pais de Hamm, Nagg e Nell –que na encenação têm os seus textos interpretados por Clov e pelo próprio Hamm.
"Nessa altura da minha vida, 'Fim de Jogo' já me pegou umas duas vezes em crise existencial durante a montagem, 'Que sentido teve tudo isso?'", descreve o ator. "Eu tenho que ter um controle grande, fazer a peça usando a cabeça. Fim de jogo é uma coisa que estou vivendo. Vou fazer 79 anos. Tenho pela frente um pouco mais, mas não é 20, 30 anos."
O intérprete de espetáculos históricos como "Pequenos Burgueses" (1962) e "Calabar" (1980) já planeja o próximo, "Molière", sobre um conflito imaginário entre o comediógrafo e o trágico Racine, sobre o teatro.