Folha de S. Paulo


Performance camaleônica de Bowie rendeu carreira prolífica no cinema

O raio vermelho de Bowie não tinha como não resvalar no terreno do cinema —o músico contabiliza mais de 450 participações em trilhas sonoras. Sua presença camaleônica também não tardaria a acender a mente dos cineastas, despertos para o potencial do cantor como corpo para personagens excêntricos.

De vampiro a duende do mal, passando por Andy Warhol e Pôncio Pilatos, Bowie conta com mais de 30 atuações, em geral antinaturalistas, fruto do contato que músico teve com a mímica e o teatro experimental nas mãos do coreógrafo Lindsay Kemp, nos anos 1960. O estilo não raro gerou chiadeira dos mais afeitos a interpretações realistas.

Em 1969, enquanto Bowie levava a música a dimensões estratosféricas a reboque de seu hit "Space Oddity", ele viveu em seu primeiro longa um jovem militar de preocupações bem mais terrenas: "Os Soldados Virgens" aborda um grupo de recrutas que temem tanto o front quanto ter uma mulher na cama.

BOWIE, O ESQUISITÃO

O primeiro papel esquisitão foi em 1976 na ficção científica "O Homem que Caiu na Terra", de Nicolas Roeg. O filme entrou em cartaz pouco antes de sair o disco "Station to Station" -o Thin White Duke, a persona zumbificada vivendo à base de leite e cocaína que Bowie encarnou no álbum encontra ecos no ET do longa, que busca retornar para casa, mas se depara com a ganância dos terráqueos.

A década de 1970 para Bowie também seria marcada pelo alemão "Just a Gigolo" (1978), de David Hemmings. Ele vive um veterano de Guerra que se torna um gigolô no bordel tocado por uma baronesa (Marlene Dietrich).

Os anos 1980 registram alguns dos papéis mais conhecidos, a começar pelo vampiro andrógeno de "Fome de Viver" (1983), de Tony Scott. O filme, com Catherine Deneuve, foi um fracasso de bilheteria. A crítica ralhou com as atuações e com o ritmo lento, mas a obra ganhou status cult.

David Bowie

A compensação crítica veio no mesmo ano com "Furyo, em Nome da Honra", de Nagisa Ôshima: a trama sobre um militar britânico num campo de prisioneiros japonês foi ao Festival de Cannes.

Data também desta década, mais precisamente de 1986, outro dos seus personagens marcantes: o vilão de "Labirinto: A Magia do Tempo" (1986), fantasia oitentista repleta de bonecos desenvolvidos por Jim Henson, o criador dos Muppets. No filme, Bowie faz o rei dos duendes.

Em 1988, Martin Scorsese escala o músico para viver Pôncio Pilatos em "A Última Tentação de Cristo", retrato mundano da vida de Jesus. A primeira escolha do diretor para o papel do vilão bíblico, contudo, era o cantor Sting.

Os anos 1990 renderam a Bowie papéis bem menos memoráveis, como o bartender de "Romance por Interesse" (1991), o gângster de "Everybody Loves Sunshine" (1999) e o ser de 400 anos de "O Segredo de Mr. Rice" (2000). De mais relevante na década, há sua interpretação de Andy Warhol, que alavanca a carreira de Jean-Michel Basquiat na cinebiografia "Basquiat —Traços de uma Vida" (1996).

Nos últimos anos, tendo colhido bombas no cinema, o músico passou a ser mais seletivo: participou da comédia de "Zoolander" (2001), de Ben Stiller, viveu o cientista Nikola Tesla em "O Grande Truque" (2006), de Christopher Nolan, e encerraria com uma participação no drama "Reação Colateral", de 2008.

PRINCIPAL PAPEL

O maior papel de Bowie no cinema, contudo, estava reservado aos bastidores, ou melhor, ao seu legado como figura central da cultura pop.

Além das suas mais de 450 participações em trilhas sonoras, que vão de filmes de blockbusters "Guardiões da Galáxia" (2014) às obras autorais de Lars von Trier, Bowie e suas canções são citações inesgotável em filmes e séries.

Em "Quase Famosos" (2000), de Cameron Crowe, filme sobre a cena do rock no início dos anos 1970, é mencionado como um dos roqueiros paparicados pelos fãs. No canadense "C.R.A.Z.Y.-Loucos de Amor" (2015), o protagonista se fecha no quarto e pinta o raio do cantor no rosto enquanto ouve "Space Oddity".

A música de Bowie é fio condutor de "A Vida Secreta de Walter Mitty" (2013), dirigido e protagonizado por Ben Stiller, seu fã. Na série "Life on Mars", o protagonista ouve a canção homônima quando sofre um acidente e é transportado direto para o ano de 1973.

Entre as principais participações de Bowie em trilhas sonoras estão "Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída", que se serve das canções de sua fase alemã, e "A Vida Marinha com Steve Zissou" (2004), com músicas do britânico em versões de Seu Jorge.

No cinema nacional, o hit "Heroes", de Bowie, embala "Praia do Futuro" (2014), de Karim Aïnouz, "Modern Love" toca em "Hoje Eu Quero Voltar Sozinho" (2014), de Daniel Ribeiro, e "Five Years" é uma das canções que ouve a protagonista de "Califórnia" (2015), de Marina Person.

Colaborou THEA SEVERINO


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