Folha de S. Paulo


análise

Bowie era uma faca de vários gumes

Bandas medianas de rock costumam lançar um bom primeiro disco, mas depois a ladeira é só abaixo. Grandes compositores, por outro lado, melhoram com o tempo, mas sua estreia já causa estrago.

David Bowie, curiosamente, não. Lançou três discos ordinários, conquistou sucesso e parecia fadado a engrossar a lista de cantores de um hit só.

É um enorme espanto que, com um começo tão pouco promissor, o inglês tenha se tornado um dos maiores artistas que o mundo pop forneceu não só à cultura, mas aos costumes do século 20.

Afinal, caso você respirasse o ar dos anos 1960, nada indicava que Bowie seria esse fenômeno, que ganhou o apelido de camaleão do rock, misturando o gênero com soul, depois com disco e finalmente com música eletrônica.

Mais do que Beatles ou Bob Dylan, Bowie fez algo além de rock. Arquitetava colaborações com designers, fotógrafos e cineastas e devolvia músicas e modas (o cabelo vermelho arrepiado em cima e batido do lado), imagens (um raio colorido no rosto) e filmes (vide "O Homem que Caiu na Terra", de Nicolas Roeg, 1976).

INÍCIO MEDÍOCRE

David Robert Jones tinha 15 anos quando montou sua primeira banda, em 1962, mas nenhuma da cinco ou seis das quais participou deu em algo. Para evitar confusões com o músico Davy Jones, do Monkees, procurou um novo sobrenome.

Achou na fábrica de facas Bowie, e ele aproveitou para espalhar a lenda de que havia sido ferido na vista por uma lâmina dessa marca, daí o fato de ter a íris do olho esquerdo mais dilatada que a do direito (e não de cores distintas).

Seu primeiro álbum, de 1967, é tão ruim que nem os fanáticos que se vestem de Ziggy Stardust (um de seus personagens) ou pintam o rosto como Aladdin Sane (outro) se lembram que existe.

Os dois seguintes tampouco brilham, e pouco se salva neles além das músicas que dão título aos discos: "Space Oddity" (1969) e "The Man Who Sold the World" (1970).

"Space Oddity" é ainda hoje uma de suas canções inesquecíveis. Bowie a compôs após ver "2001 - Uma Odisseia no Espaço" (1968) e fala de um astronauta que sai de sua cápsula e não consegue retornar.

Na sua primeira jogada de marketing (uma de suas especialidades futuras), a faixa foi lançada com a chegada do homem à Lua, em 20 de julho de 1969.

Já "The Man Who Sold the World" é famosa pela versão acústica do Nirvana, de 1993. Mas, em 1970, o que chamou a atenção foi a capa do álbum, com Bowie deitado languidamente em um divã e usando vestido longo.

Foi só a partir do final de 1971 que David começaria a se tornar Bowie. Estava casado com Angela Bowie (a provável "Angie" da canção dos Rolling Stones), tinha um filho a caminho (Zowie, o cineasta Duncan Jones). E estava prestes a fazer 25 anos.

ZIGGY PÓ DAS ESTRELAS

Mas os discos "Hunky Dory" e "The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars" o colocaram no alto. Daí, e até o fim dos anos 1980, todos os seus álbuns frequentariam a lista dos dez mais vendidos na Inglaterra.

David Bowie - discografia

De "Hunk Dory" (1971), as canções "Changes" e "Life on Mars?" o transformaram em astro. Já "Ziggy Stardust" (1972) -um álbum conceitual sobre um alienígena roqueiro na Terra- fez dele um ícone.

Teatrais, os shows apresentavam Bowie na pele do próprio Ziggy, o primeiro de vários personagens que encarnaria. A jogada atraiu seguidores de todo o mundo, enquanto seu visual magérrimo, com meia arrastão e cabelos vermelhos, começou a ser copiado incessantemente.

Em 1973, foi lançado um filme com o último show dessa turnê histórica, a mais importante de sua carreira.

Foi uma época em que o talento incubado de Bowie jorrava para todos os lados. Em 1972, atravessou o Atlântico e, ao lado do guitarrista Mick Ronson, produziu "Transformer", de seu ídolo Lou Reed.

O álbum, que apresentou ao mundo os clássicos "Walk on the Wild Side", "Satellite of Love" e "Perfect Day", tirou Reed do ostracismo cult e o alçou a estrela mundial.

No ano seguinte, ele coproduziu "Raw Power", de Iggy Pop e seus Stooges.

Já Ziggy Stardust abriu o horizonte de Bowie, cujo disco seguinte foi gravado em Londres, Nova York e Nashville. "Aladdin Sane" (1973) colocou um álbum do artista pela primeira vez no topo da parada britânica. Na capa, Bowie aparece com o famoso raio azul e vermelho pintado no rosto.

Seguiram-se o LP de covers sessentistas "Pin Ups" (1973) e "Diamond Dogs" (1974). Ambos alcançaram o primeiro lugar na Inglaterra.

EUA E ALEMANHA

É nesse momento de grande sucesso em sua terra natal que Bowie a abandona. Muda-se para os Estados Unidos e grava dois álbuns inspirados na música norte-americana, "Young Americans" (1975) e "Station to Station" (1976), abraçando o funk, o soul e assumindo a personagem Thin White Duke.

Neste último álbum, gravado sob alto consumo de cocaína, Bowie começava a se aproximar do rock minimalista baseado em sintetizadores que seria a força de seus três discos seguintes.

Buscando um ambiente para se livrar das drogas, mudou-se para a Alemanha e, em parceria com Brian Eno, gravou entre 1977 e 1979 a chamada Trilogia de Berlim. "Low", "Heroes" e "Lodger" são álbuns mais complexos, com menos hits, mas festejados na época e lembrados até hoje.

Apesar de a trilogia ter vendido bem na Inglaterra (respectivamente em segundo, terceiro e quarto lugares nas paradas), atraiu menos interesse do resto do mundo.

Em 1980, no entanto, Bowie voltou a aliar sucesso comercial e ótimas críticas pelo álbum "Scary Monster (and Super Creeps)". Nesse ano, também se divorciou de Angie.

Foi uma época com diversos hits, como "Ashes to Ashes", "Under Pressure" (com o Queen), "Modern Love", "China Girl" e "Let's Dance".

Bowie havia se tornado uma estrela mundial. O resto dos anos 1980 viu grandes canções lançadas em álbuns ("Blue Jean", "Never Let me Down"), em filmes ("This is Not America", "Absolute Beginners" e "Underground") e singles ("Dancing in the Street", com Mick Jagger).

E, então, da mesma forma como estourou em 1972, a chama de Bowie parece ter começado a apagar a partir de 1989.

Veja o vídeo

Em 1990, esteve no Brasil com a turnê "Sound+Vision", que enfileirava apenas hits de toda sua carreira, para uma apresentação no Rio e três em São Paulo. Dois anos depois, casou-se com a modelo somali Iman, com quem teve uma filha, Alexandria, em 2000.

MAIS OPACO

Entre 1989 e 2003, lançou oito trabalhos inéditos, num invejável ritmo de um CD a cada dois anos, mergulhando cada vez mais na eletrônica. Mas nenhum deles chegou perto da influência que alcançava nas décadas anteriores.

Mas criou em outras áreas: em 1997, lançou na bolsa de valores ações baseadas na venda de seus discos (antigos e futuros) e, em 1998, a Bowienet, um provedor de internet que fornecia o email @davidbowie.com.

Em 2004, sofreu um ataque cardíaco em pleno palco, na Alemanha, e parecia ter abandonado a carreira. Surpreendeu com "The Next Day" em 2013, um álbum saudosista, que resgata os anos que passou em Berlim, e cuja capa era uma releitura de "Heroes", de 1977.

O trabalho foi muito bem recebido por crítica e público (primeiro lugar na Inglaterra; segundo nos EUA) ao mesmo tempo em que era aberta uma exposição sobre sua carreira no Victoria and Albert Museum, em Londres. A mostra teve enorme sucesso e seguiu para países como o Brasil, onde foi apresentada no Museu da Imagem e do Som de SP.

E, então, lançou um estranho disco de jazz no dia em que completou 69 anos, em 8 de janeiro de 2016. Mas era mais do que um disco: era uma despedida planejada e coreografada, espetacular como toda sua obra.
David Bowie deixa dois filhos, 25 álbuns de estúdio e vários gumes de influência na cultura pop.

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