Folha de S. Paulo


depoimento

Só o Kim é gordo no país mais fechado do mundo

Em 2013, passei uma semana em Pyongyang, capital norte-coreana, hospedada na embaixada do Brasil por lá. Eu podia andar sozinha pela rua, podia ir ao mercado, podia jogar boliche com locais —uma liberdade atípica para os padrões do lugar. Foi a coisa mais pitoresca que já fiz em muitos sentidos, e ainda assim tenho sentimentos dúbios sobre o conjunto da obra.

Na época, escrevi um artigo para a revista "piauí" sobre Che, um dos tradutores da embaixada. Ele tinha a minha idade. Assim como eu, havia estudado Letras. Fim do catálogo de semelhanças. Che se formou na primeira turma de português da Universidade de Pyongyang, nunca saiu da cidade, seus professores eram norte-coreanos que aprenderam o idioma em Macau. Antes de ser tradutor, ele era pintor de paredes.

Pouco depois, fiz uma matéria para a Folha sobre turismo nas duas Coreias. Se me permitem a autocrítica diante dos mecanismos do Partido, é de extremo mau gosto falar em turismo na Coreia do Norte. Sim, ele existe. Cerca de 3.000 ocidentais (uns 20 deles brasileiros) vão lá todos os anos. Custa caro e turistas só podem circular acompanhados de guia e motorista. A maior parte dos estrangeiros vai assistir ao "mass game", uma espécie de grande abertura de Jogos Olímpicos de um país só, sem a burocracia de ter que fazer uma Olimpíada depois.

Ler os relatos dos turistas geralmente dá vergonha. Gente que precisou chegar até a Coreia do Norte para descobrir que as pessoas de lá: sofriam. Gente glamorizando a falta de internet, a ausência de consumismo, a estética "kitsch vintage Wes Anderson". A resposta para os seus problemas de hiperconectividade e distração crônica pode ser uma monarquia vagamente socialista que faz cerca de 40% de seus presos, puf, sumir.

Hoje os norte-coreanos sequer se reivindicam comunistas. Não há na iconografia nacional quase nenhuma menção à Marx ou Lênin. Em vez disso, temos incidência de unicórnios, segundo a imprensa local. Saem os sovietes, entram os unicórnios, fica o Realismo socialista. Esse é o espírito. Quem compara a Coreia do Norte a Cuba ou mesmo à China está pirado.

A essa altura você provavelmente quer um "relato em primeira mão" de como a Coreia do Norte "realmente se parece". Eu diria que ela parece sobretudo sóbria. Tudo que é iluminado, colorido, andrógino e plastificado em Seul será contido e pastel em Pyongyang.

Ninguém é gordo, só o Kim. As crianças andam sozinhas para todo canto. Há cachorros de estimação, celulares, filmadoras, casais bonitinhos, um Arco do Triunfo maior do que o francês. Tendo passado uma semana, é difícil falar mais do que impressões. As noites quase não têm iluminação pública, mas passeia-se com lanternas, parece uma performance teatral. As pessoas andam muito e passam frio em locais fechados; no museu, dentro de casa. Não parecem mais infelizes do que em São Paulo, se for esse o parâmetro.


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