Folha de S. Paulo


crítica

Período na cadeia revolucionou verso livre do poeta Nâzim Hikmet

Em visita à Fundação Casa de Jorge Amado, em Salvador, deparei uma foto do escritor baiano com o poeta turco Nâzim Hikmet (1902-1963). O encontro aconteceu nos anos 1950, quando o autor de "Paisagens Humanas do Meu País" (1961) estava exilado em Moscou. Amado traduziu poemas do amigo, interessado no entrelace da literatura com o comunismo.

Agora, o extraordinário épico turco chega à língua portuguesa em outro momento: sua recepção deverá ser menos ideológica. Hikmet é hoje considerado o maior poeta turco da sua geração. O livro, constituído de cinco partes principais, é uma "enciclopédia subversiva" –na qual o poeta discorre sobre humildes figuras do povo, que formam as "paisagens humanas".

É sobre o eixo das vidas ordinárias e do sofrimento cotidiano que ele começa a erguer o panorama monumental da Turquia. "Kemal, que descia os degraus / descalço e sem camisa, / está sozinho / no mundo. // Fome é a única coisa de que se lembra / e, muito vagamente, de uma mulher / em algum lugar escuro." O poeta sabe que a história, na sua dimensão totalizante, é uma opressão que atinge com maior força os pobres e fracos.

Mas "Paisagens Humanas do Meu País" expressa aquela dimensão totalizante por meio dos fatos históricos locais: a dissolução do Império Otomano; o congresso de Sivas, que uniu os nacionalistas; a guerra de independência contra os gregos; o início da modernização da Turquia, por Mustafá Kemal Atatürk.

O comunismo de Hikmet não se confunde com a irrupção doutrinária: o poeta é defensor de uma fraternidade que aparece fervilhante em meio aos que se encontram nas piores condições materiais.

É a visão marxista do poeta que revoluciona o seu verso livre e altissonante –inspiradíssimo em Vladimir Maiakovski– e o torna moderno, incisivo: as "paisagens humanas" são agora sujeito do poema e da história.

Hikmet nasceu na Salônica, então parte do Império Otomano (agora pertencente à Grécia) –e sua vida foi destinada a cortes abruptos de identidade, prisões, deslocamentos imprevistos e exílios. O poeta deixou a Turquia ocupada ao final da Primeira Guerra Mundial, rumo a Moscou.

Após a proclamação da independência turca, em 1924, voltou ao seu país, mas foi em seguida preso por atividades políticas. Conseguiu regressar à União Soviética.

Mas uma anistia geral decretada em 1928 o atrai de novo à Turquia –e, durante cerca de dez anos, ele publica livros e mantém intensa atuação como jornalista e tradutor. Em 1939, foi preso sob a alegação de que havia "incitado cadetes militares à revolta": 12 anos de cárcere em Bursa lhe transmitiram a lição definitiva sobre injustiça e pobreza.

Bursa foi definida, num poema seu, como o "Avião de Pedra": "Eu olho à noite através das grades, / e apesar do peso sobre o meu peito / meu coração ainda bate com as estrelas mais distantes."

Foi na prisão que ele concebeu e escreveu "Paisagens Humanas do Meu País": "Na prisão você encontra Deus, / toda espécie de moscas, percevejos, pulgas, piolhos, contas a acertar, (...) / mas há uma coisa que resiste a entrar na prisão: / o arrependimento. / A culpa é do que já morreu, / a culpa é dos que ficaram de fora, / a culpa é do juiz."

A tradução de Marco Syrayama de Pinto, diretamente do turco, logra transmitir em português a vivacidade, a linguagem direta, o registro oral e as descrições sem rodeios do poeta, em versos que tendem ao prosaico.

Hikmet evita metáforas ou excessos líricos. Os seus arroubos às vezes se mostram com perplexidade, como nesses belos versos: "O sol permanecia dentro de sua cabeça: / uma chama com o peso de três vezes um milhão de vezes / 2 bilhões de toneladas. / Nem bom / nem ruim / nem bonito / nem certo / nem errado, / só uma vida descomunal / sem começo / nem fim."

Anos depois de ver a foto em Salvador, visitei o cemitério de Novodevichy, em Moscou –onde se encontra o túmulo de Hikmet. Há uma sólida rocha bruta com um perfil em pedra polida de um homem que caminha: imagem solitária e perseverante de quem buscou entregar a cena à multidão de miseráveis com a qual o poeta compartilhou as violências do mais aterrorizante dos séculos.

FELIPE FORTUNA, 52, é poeta, diplomata e autor do livro "O Mundo à Solta" (Topbooks).

PAISAGENS HUMANAS DO MEU PAÍS
AUTOR Nâzim Hikmet
TRADUÇÃO Marco Syrayama de Pinto
EDITORA Editora 34
QUANTO R$ 76 (575 págs.)


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