Folha de S. Paulo


Série de eventos celebra Primo Levi e amplia interpretação de seu trabalho

Ao ser libertado de Auschwitz, em 1945, Primo Levi (1919-87) estava determinado a contar todos os horrores que havia visto nos 11 meses em que fora prisioneiro, submetido a trabalhos forçados, durante a Segunda Guerra.

Dos 650 judeus italianos com quem tinha sido levado ao temido campo de concentração nazista na Polônia, 500 foram mortos nas câmaras de gás, e apenas 20 saíram dali com vida.

O que Levi não esperava, porém, é que as pessoas relutassem em escutar sua história e a do Holocausto. Seu livro que hoje é considerado um clássico, "É Isto um Homem?" (Rocco, 256 págs., R$ 28), foi inicialmente recusado pela editora Einaudi. Publicado em 1947, demorou para ser reconhecido. Levi achava que as pessoas tinham vergonha de se sentirem parte da "mesma família humana de nossos carrascos", e que por isso seus relatos incomodavam. No texto "Aniversário", escrito em 1955, Levi disse: "Parece indelicado falar dos campos de concentração, corremos o risco de sermos acusados de vitimismo ou de amor gratuito pelo macabro".

Marcello Mencarini/Leemage/AFP
Portrait de l'ecrivain italien Primo Levi en 1980. ©Marcello Mencarini/Leemage/AFP ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Retrato de Primo Levi em 1980

Vinte e oito anos após sua morte, a obra de Levi vem sendo resgatada em uma série de lançamentos que ampliam sua interpretação. Mais do que testemunha ocular de um grande massacre, agora se celebra o italiano como um dos grandes autores do século 20, além de estudioso do que se passou em Auschwitz e de alguém que colaborou para que crimes da Guerra fossem julgados.

Nos EUA, "The Complete Works of Primo Levi" (ed. Liveright) traz –além dos livros célebres– contos, ensaios, artigos e entrevistas não publicadas antes. A edição ficou por conta de Ann Goldstein, num trabalho de pesquisa que durou 15 anos e integrou a lista dos cem melhores livros de 2015 do "New York Times".

Outro trabalho, "Primo Levi's Resistance", de Sergio Luzzatto, investiga sua participação na resistência à ocupação nazista, enquanto na Itália uma nova edição de suas obras completas, com mais de 250 páginas de inéditos, terá lançamento no fim do ano.

No Brasil, saiu recentemente "Assim Foi Auschwitz" (Companhia das Letras, 280 págs., R$ 39,90), também com textos inéditos, reunindo testemunhos nos julgamentos do pós-Guerra e descrições detalhadas sobre o campo de concentração.

Nos próximos dias 27 e 29 de janeiro, a obra de Levi será celebrada no Brasil, num evento da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (leia ao lado) que também lembra os 71 anos da libertação de Auschwitz pelas tropas russas.

"A década seguinte foi, para Levi e outros sobreviventes, um deserto para ser atravessado na solidão, mas ele fez o que pôde para levar sua mensagem adiante", diz à Folha o acadêmico Domenico Scarpa, que participará do evento.

Philippe Cherel/Maxppp/Xinhua
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Entrada do campo de concentração de Auschwitz, onde se lê, em alemão, a frase 'o trabalho liberta'

O diretor do Centro Internazionale di Studi Primo Levi, Fabio Levi (sem parentesco), crê que "a longa recusa a prestar atenção aos testemunhos dos sobreviventes sempre foi uma razão de ansiedade para Levi, mas também um grande desafio, que marcou sua obra".

Entre os textos inéditos recentemente recuperados estão relatórios médicos sobre o estado de saúde dos ex-prisioneiros elaborados por ele logo após a libertação do campo, além de meticulosas listas de nomes que Levi armou para tentar determinar quem havia sobrevivido às câmaras de gás e aos trabalhos forçados.

"Levi as escreveu cuidadosamente e com uma atenção fervorosa. Elas mostram a empatia que sentia pelas peculiaridades de cada um. Seu objetivo era transformar os números registrados nos campos numa lista de pessoas inesquecíveis", diz Scarpa.

PRISÃO

Jovem químico que levava uma vida pacata em sua Turim natal, Levi foi preso pela milícia fascista ao juntar-se a resistentes à ocupação nazista. Após alguns meses em um campo na Itália, foi entregue aos alemães e, em fevereiro de 1944, transportado para Monowitz, um dos três principais campos que integravam o complexo de Auschwitz.

Em "É Isto um Homem?", Levi descreve de modo objetivo e cru os sofrimentos que desumanizavam os prisioneiros. Ele já referia-se a si próprio como 174517, seu número de inscrição. Em 1963, lançou "A Trégua" (Companhia das Letras, 360 págs., R$ 57), continuação dessas memórias.

Para Scarpa, os escritos técnicos de Levi são essenciais para dimensionar sua real contribuição. "Levi fez coisas como levar o Zyklon B, gás usado nas câmaras, para ser estudado em seu próprio laboratório", afirma.

INÉDITO

Apesar dos novos títulos que vêm agora à tona, o livro em que estava trabalhando até morrer seguirá inédito: "The Double Bond", em que estabelece um diálogo entre a história e a ciência. "Não está terminado, portanto não será publicado", diz Fabio Levi.

MORTE CONTROVERSA

A morte de Primo Levi continua sendo um mistério.

O escritor foi encontrado morto em 11 de abril de 1987, aos 67, após cair do terceiro andar do edifício onde nasceu e viveu quase toda a vida, em Turim –exceto os 11 meses em que esteve em Auschwitz.

O laudo policial atesta suicídio, e vários sobreviventes e intelectuais apressaram-se a relacionar suas causas com a lembrança da experiência do campo. O escritor romeno Elie Wiesel, também prisioneiro, disse: "Primo Levi morreu em Auschwitz 40 anos depois".

Nos últimos tempos, porém, o episódio levanta dúvidas. Os estudiosos Berel Lang e Diego Gambetta chamaram a atenção para o fato de Levi sofrer de depressão mesmo antes da guerra, ter brigas com a mulher e não estar bem fisicamente (operou a próstata pouco antes da morte), o que significaria que o suicídio teria outras causas. "A experiência do campo sem dúvida é terrível, mas por si só não é evidência de nada", diz Gambetta.

Já para alguns amigos do escritor, além de seu cardiologista, morte pode ter sido acidental, fruto de desequilíbrio causado pela debilidade de sua saúde. Defensores dessa hipótese dizem que Levi não se mataria quando estava para lançar um novo livro e tinha agendadas, para a semana seguinte, reuniões sobre uma possível candidatura para assumir a presidência da editora Einaudi.

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PRIMO LEVI NO BRASIL

> Dia 27, às 17h, o editor e acadêmico italiano Domenico Scarpa fará a leitura da Conferência Primo Levi, texto produzido pelo Centro Internazionale di Studi Primo Levi, de Turim e editado, em 2015, pela Einaudi

> Dia 29, às 17h, Domenico Scarpa e Fabio Levi, diretor do Centro Internazionale di Studi Primo Levi, apresentarão o livro "Assim Foi Auschwitz"

LOCAL Biblioteca Nacional - av. Rio Branco, 219, Rio de Janeiro, tel. (21) 3095-3862


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