Folha de S. Paulo


CRÍTICA

'8 ½' é um patrimônio do museu do cinema

"O que prepara para nós? Mais um filme sem esperança?", pergunta um médico ao cineasta que sofre de um vago mal e enfrenta uma crise de inspiração enquanto organiza seu próximo trabalho.

A questão reverbera o niilismo de "A Doce Vida", longa anterior de Fellini, e leva a acreditar que o protagonista de "8 ½" seja o próprio diretor em forma ficcional.

Além disso, o título "8 ½" refere-se à contagem dos filmes que Fellini havia realizado até então: o primeiro longa foi uma codireção, os seis seguintes que assinou sozinho mais os episódios de "Amores na Cidade" e de "Bocaccio 70".

Reprodução
ORG XMIT: 363701_0.tif Cinema: cena do filme
Cena do filme de 1963, do cineasta Federico Fellini

Seria fácil identificar nessas autorreferências a ponta de um iceberg autobiográfico por trás das imagens introspectivas que compõem o longa.

Em vez de escolher uma expressão que ironiza o ocaso de uma civilização, como "A Doce Vida" (1960), ou um termo de dialeto que faça coincidir história e memória, como "Amarcord" (1973), o nome "8 ½" parece reduzir a complexidade ao ponto de vista de um artista demiurgo.

O ano de sua realização, 1963, marca o apogeu do cinema de autor, quando trilogias de Antonioni e Bergman desafiavam o público com narrativas imbricadas, Godard demonstrava que o cinema pensa e Resnais suspendia a crença no tempo e no espaço.

A superioridade estética do cinema autoral impunha, junto com o estilo único, um universo de referências e obsessões. Não bastava que um filme fosse bom ou belo, era preciso também ser "bergmaniano", "godardiano", "glauberiano" ou "felliniano". Por isso, é difícil ver "8 ½" hoje sem sentir o peso de sua idade.

A sobrecarga desse eu autoral impõe-se a cada cena e, por mais que a fábrica de imagens de Fellini tenha conservado parte de seu fascínio, o filme se tornou patrimônio do museu do cinema.

Mas, ao mesmo tempo que busca o excesso, Fellini se contrapõe nas falas do escritor que provocam o protagonista Guido (Marcello Mastroianni) a sair de seu eu sem fundo.

"Estamos sufocados por palavras, por imagens, por sons que não têm razão de ser, que vieram do nada e retornarão ao nada. A um artista que seja realmente digno desse nome só se deveria pedir a lealdade de educar-se para o silêncio", diz o escritor.

Na última cena, o cineasta, aliviado, deixa o comando e integra-se à trupe de atores, produtores e técnicos que dançam em torno do picadeiro. No centro, sozinho, resta seu fantasma de criança que some ao apagar das luzes.


DIREÇÃO Federico Fellini
ELENCO Marcello Mastroianni, Anouk Aimée, Claudia Cardinale
PRODUÇÃO França/Itália, 1963, 14 anos
QUANDO a partir de quinta (7), às 21h30, no Espaço Itaú - Augusta


Endereço da página: