Folha de S. Paulo


Livro '1606' abre celebrações dos 400 anos da morte de Shakespeare

Em 5 de novembro de 1605, o rei James, nobres e líderes da igreja da Inglaterra iriam todos pelos ares, num atentado a bomba no parlamento. Mas um dia antes foi flagrado no subsolo o católico Guy Fawkes, com 36 barris de pólvora, e em meses a conspiração inteira veio abaixo.

Shakespeare começou então um de seus anos de maior e mais sombria criação para o teatro, reencontrando a voz perdida em 1603 com a morte da rainha Elizabeth e com a censura mais rígida. É o que James Shapiro, da Universidade Columbia, conta em "1606", que lançou em novembro –adiantando-se à torrente de obras sobre o dramaturgo no quarto centenário de sua morte, em 23 de abril próximo.

Um dos livros do ano segundo o jornal "The New York Times", que o descreve como brilhante e fascinante, "1606: William Shakespeare and the Year of Lear" relaciona as três peças que ele escreveu nesse ano, "Rei Lear", "Macbeth" e "Antônio e Cleópatra", com "o que estava acontecendo naquele tempo carregado".

"Não acho que um só acontecimento tenha definido as peças, e sim uma confluência de acontecimentos perturbadores, no início do reinado de James", diz Shapiro à Folha.

"Mas, para o homem e a mulher comuns, nas ruas, a queda da Conspiração da Pólvora, incluindo a caçada dos conspiradores, sua captura, tortura, julgamento, execuções brutais, que foram de janeiro até maio, deve ter sido o mais angustiante."

MÁSCARAS

Tanto que o 5 de novembro se tornou data nacional, com a "máscara" de Guy Fawkes sendo queimada anualmente em fogueiras –e, mais recentemente, inspirando o filme "V de Vingança" (2006) e o ativismo de movimentos como Anonymous e Occupy Wall Street. No teatro de Shakespeare, o regicida Macbeth, incorporação do mal, é um Guy Fawkes que deu certo.

"O que começou com um grupo de católicos descontentes e seus confessores jesuítas, no que era essencialmente uma trama terrorista que esperava destruir a família real e toda a liderança política e religiosa do país, restaurando a velha religião, se transformou quatro séculos depois num símbolo do enfrentamento dos poderosos, com a proliferação das máscaras e tudo mais", afirma Shapiro.

Bruno Santos/Editoria de Arte/Folhapress

"Com certeza, é um jeito estranho de ver um ataque que poderia ter matado milhares de inocentes, mas –como Shakespeare compreendia e teria gostado [do desdobramento]–, a história é escrita e reescrita de maneiras surpreendentes e imprevisíveis."

Além da perseguição aos conspiradores, que abrangeu até vizinhos e parentes do dramaturgo em Warwickshire, sua região natal, havia a peste, abordada nas três peças e que matou até na casa onde Shakespeare se hospedava em Londres.

As irrupções da doença atingiam elencos e plateias, fechando os teatros londrinos sempre que a contagem de mortos passava de 30 ou 40 por semana. Em meados daquele ano, a número semanal passou de 160. Cada morte era anunciada pelo tocar de sinos, o que afligia os londrinos o dia todo e também acabou por ecoar nas peças.

Um terceiro traço histórico de 1606 foram os esforços de James, também rei da Escócia, para unir os dois países, o que dependia do parlamento inglês, carregado de preconceito antiescocês. Protagonistas como o celta Lear e o escocês Macbeth aparecem não mais num contexto de "história inglesa", como nas peças shakespearianas do período elisabetano, mas "britânica", mostra o livro.

PARALELOS

Como já havia feito em sua obra sobre o ano de "Hamlet", que intitulou "1599", Shapiro lança pontes para o presente, com o conflito anglo-escocês repercutindo no recente plebiscito que quase dividiu o Reino Unido. "Uma das lições do meu livro é que a união de Escócia e Inglaterra, que começa a se desenredar agora, era tênue desde o início", diz.

"As rachaduras entre as duas culturas eram profundas. Muitos escritores em 1605-06, Shakespeare incluído, foram rápidos em perceber como seria difícil juntar as duas nações, como James tanto queria", conta o autor.

"É só olhar para a bandeira que foi desenhada e usada pela primeira vez em 1606 para simbolizar a união do Reino Unido, a Union Jack, para ver o problema. Os escoceses imediatamente contestaram que a bandeira inglesa havia sido sobreposta à deles."

O autor vê "paralelos ricos" também entre os conflitos religiosos da época e de hoje, entre cristãos e muçulmanos –ou entre sunitas e xiitas: "A ameaça de violência de uma minoria religiosa descontente; o medo de ver os jovens doutrinados contra o Estado; a reação hostil como resposta à percepção de terrorismo por aqueles que estão no poder, inclusive impedir minorias de viver na capital".

"Quanto mais as coisas mudam, mais elas parecem continuar as mesmas, pelo menos em termos de diferenças que fervilham há muito tempo", conclui Shapiro.

O autor já foi atração da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) em 2012 e teve dois de seus livros mais recentes publicados no país, "1599 - Um Ano na Vida de William Shakespeare" (Planeta, 440 págs., R$ 44,90) e "Quem Escreveu Shakespeare - A História de Mais de Quatro Séculos de Disputa pela Herança de uma Autoria" (Nossa Cultura, 358 págs., R$ 43). Mas ainda não há notícia de uma edição brasileira de "1606".

1606: WILLIAM SHAKESPEARE AND THE YEAR OF LEAR
AUTOR James Shapiro
EDITORAS Faber & Faber (Inglaterra) e Simon & Schuster (EUA)
QUANTO cerca de R$ 60, em formato e-book (448 págs.)

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frases

"Tanta coisa do que pensamos, nossas concepções de raça, nação, globalismo, estava surgindo entre os séculos 16 e 17. Não é surpresa que nos voltemos aos grandes autores daquele tempo, Shakespeare, Cervantes"
JAMES SHAPIRO
escritor

"Surgem fatos novos sobre Shakespeare a cada um ou dois anos, mas não alteram nossa percepção de quem ele era. O que está se alterando é a compreensão cada vez maior das mudanças que aconteceram há 400 anos"
IDEM

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PARA VER 'MACBETH'

No Teatro
Ron Daniels dirige Thiago Lacerda (Macbeth) e Giulia Gam (Lady Macbeth) na peça

Sesc Vila Mariana, r. Pelotas, 141, tel. (11) 5080-3000; qui. e sáb., às 21h, até 30/1; ingr.: R$ 18 a R$ 60

NO CINEMA
Michael Fassbender e Marion Cotillard protagonizam o filme do diretor Justin Kurzel

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