Folha de S. Paulo


Com jogos farsescos, livro propõe quebra-cabeça literário

Entrar em uma sala de espelhos -onde as imagens se multiplicam ao infinito-, cair na toca do coelho, perder-se em um labirinto de papéis avulsos.

Escolha a melhor metáfora, porque era essa a intenção de J. J. Abrams ao conceber "S." (Intrínseca), experimento narrativo que chega agora às livrarias.

Desenvolvido dentro da Bad Robot, produtora do americano diretor do último "Star Wars", o livro traz Abrams na mesma posição que assumiu em séries como "Lost" e "Fringe" -a de "showrunner", espécie de maestro do projeto. O livro foi escrito por outro autor, Doug Dorst, sob a batuta do chefe.

Eduardo Knapp/Folhapress
O romance "S.", de J. J. Abrams e Doug Dorst

Para o leitor não se perder: "S." é a letra impressa na caixa em que vem a obra. Dentro dela, está um livro chamado "O Navio de Teseu", assinado pelo autor fictício V. M. Straka, "publicado" em 1949 e "traduzido" por um igualmente fictício F. X. Caldeira.

À primeira olhada, parece que "O Navio de Teseu" vai atacar a rinite do leitor, porque tem jeito de livro velho saído de uma biblioteca. Mas é tudo de mentira.

O mistério é que ninguém sabe quem foi V. M. Straka, dissidente político que desapareceu não se sabe como. O livro só existe graças ao "tradutor", que reuniu a papelada.

Além da história contada por Straka, há outra narrada nas notas do "tradutor" e uma terceira como marginálias [as anotações nas margens do livro], escritas por dois leitores: Jennifer e Eric, pesquisador que investiga a identidade de Straka (e é perseguido por um inimigo).

Entre as páginas há uma série de documentos, cartas, bússola, cartões-postais -alguns deles enviados do Brasil ou com referência ao país, para onde Eric chega a viajar. Como ler toda essa papelada, que ainda pode cair das páginas e se embaralhar? Nem o autor sabe direito.

"Sou a última pessoa de quem procurar conselho", diz Doug Dorst. "Escrevi o livro em camadas, ele foi ficando mais e mais complexo. Por isso, nunca precisei encarar todos os textos de uma vez, sem saber o que estava acontecendo".

A reportagem tentou de vários modos e achou melhor ler primeiro o texto de Straka e depois voltar às notas dos dois personagens.

E quem bagunçar os papéis entre as páginas deve se preocupar, porque a ordem faz sentido. Há uma lista de fãs na internet mostrando onde cada documento deve ficar, com fotos, que a Intrínseca já traduziu.

INSPIRADO EM B. TRAVEN

Apesar do ineditismo que gostam de atribuir a seu livro, não é que não haja influências em "S." V. M. Straka. A figura do autor fictício é inspirada no escritor real B. Traven -mexicano cuja identidade até hoje não é conhecida com certeza.

"Mas essa influência é mais pela história pessoal de B. Traven do que por sua prosa", diz o escritor Doug Dorst. "Fora isso, 'Os Sonâmbulos', de Hermann Broch, e vários trabalhos de Kafka tiveram uma influência no processo."

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Sao Paulo, SP, Brasil, 17-12-2015 15h35:Drtalhes do livro O NAVIO DE TESEU, que apresenta projeto grafico diferente e de autor ficticio (Foto Eduardo Knapp/Folhapress. ILUSTRADA). Cod do Fotografo: 0716
Romance traz anotações nas margens

O resultado de "S." é um livro que pode ser confuso se um método de leitura não for encontrado -e o estilo de V. M. Straka, imitando um autor dos anos 1940, por vezes é arrastado e monótono.

Encontrar a voz do escritor fictício foi um processo. Afinal, a ideia era que ele não soasse nem como Abrams nem como Dorst.

"Foi libertador. Uma das melhores coisas em escrever é a sensação de se perder na voz e na sensibilidade de outra pessoa", afirma Dorst.

O livro, explica ele, também vem de sua paixão pela metaficção -ele estudou com o autor americano Gilbert Sorrentino, morto em 2006 e conhecido pela experimentação narrativa.

"Também gosto do realismo linear, mas há uma graça extra em histórias que trazem uma lado lúdico, subversivo, idiossincrático".

Embora de apelo aos nerds, "S." é uma volta ao mundo analógico, porque faz mais sentido como objeto. No Brasil, nem haverá versão digital, porque a graça seria parecer que a obra foi tirada de uma antiga biblioteca e lida por outras pessoas.

Foi por isso que a versão nacional demorou dois anos para ficar pronta. Ela precisou ser impressa na China, porque não havia gráficos no Brasil capazes de dar conta do projeto -os documentos entre as páginas, por exemplo, têm papéis de diferentes tipos e espessuras.

Estes, aliás, foram incluídos em seus devidos lugares manualmente. Não bastasse o trabalho, os chineses não tinham papel para fazer um guardanapo que também faz parte do conjunto -este foi impresso aqui e também incluído em cada exemplar.

"Fui batendo de porta em porta, falando com os donos das gráficas, explicando a história... Ninguém quis fazer nem orçamento", conta Raphael Pacanowski, gerente de produção gráfica da Intrínseca.

Emily Berl - 22.out.2013/The New York Times
Doug Dorst (em pé) e J. J. Abrams

A obra chega com tiragem de 12 mil exemplares -e se virar best-seller vai ser difícil reimprimi-lo, porque um livro pode demorar até quatro meses para chegar da China.

Também foi preciso contratar um caligrafista (leia ao lado) para reproduzir a letra dos dois personagens que escrevem nas margens do livro de V. M. Straka. Só esse processo demorou um ano para ficar pronto. "É uma ode ao livro impresso, se fosse digital perderia o encanto", diz Pacanowski.

"Queríamos que o livro fosse bonito e o leitor pudesse ter a sensação de que tem em mãos a cópia que os dois personagens trocavam entre si", diz Doug Dorst. "E tudo isso sem que o preço de capa fosse ultrajantemente caro".

O livro custa R$ 99,90.

CALIGRAFISTA FOI CONTRATADO

O designer Antonio Rhoden começou a carreira de caligrafista, ainda criança, como falsificador. Ao fazer provas na escola, resolvia as questões com a letra de colegas de classe. Depois tinha de provar à professora que não era cola.

Foi ele que recebeu a missão de reproduzir a caligrafia de Eric e Jennifer, os dois personagens que rabiscam as margens de "O Navio de Teseu". Logo ele, que confessa ter a "letra horrível".

Ao todo, Rhoden ficou quase um ano para concluir o trabalho. No começo, precisou assistir a vídeos na internet para ver como os americanos escreviam, como seguravam a caneta.

Testou várias delas e, no fim, precisou importar algumas iguais às que haviam sido usadas na versão original. Elas não eram fabr litericadas no Brasil.

"É como o trabalho de um ator, você decora o texto e manda ver. É uma coisa meio psicografada", diz.

Depois do ano que passou escrevendo como dois personagens, o caligrafista conta que às vezes escreve como eles no automático.

A essa altura, não é de todo improvável encontrar um bilhetinho em sua geladeira escrito com a letra de Eric ou Jennifer.


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