Folha de S. Paulo


Premiado pela Áustria, Backes já traduziu 14 mil páginas do alemão

Na manhã desta quarta-feira (16), o escritor e tradutor Marcelo Backes tornou-se o primeiro brasileiro a ganhar o Prêmio Nacional da Áustria de Tradução, dado todo ano pelo governo do país a algum tradutor especializado em verter para outra língua obras de autores locais.

Como premiação, Backes vai levar para casa 8.000 euros (R$ 34 mil).

Rino Bianchi/Divulgação
O escritor e tradutor Marcelo Backes, em Roma

É ele o tradutor de nomes como Arthur Schnitzler, Günter Grass, Hermann Broch, entre outros. Além disso, é autor de romances como "Último Minuto" (Companhia das Letras) e "Três Traidores e Uns Outros" (Record).

O gaúcho vive, com o prêmio, o ponto alto de sua relação com a língua alemã —iniciada ainda na infância, quando o filho de imigrantes radicados em Campina das Missões (RS) aprendeu o dialeto de seus antepassados.

Era um alemão diferente do que a língua padrão falada hoje na Alemanha, porque preservava alguns arcaísmos do idioma.

O filho de imigrantes conta que começou a traduzir obras de língua alemã para o português por uma "necessidade iluminista": via que o país de sua família tinha obras cruciais para a literatura universal, mas que não existiam em português.

Nesta entrevista à Folha, Backes fala do começo de sua relação com o idioma estrangeiro, além de contar como a experiência de tradução marca seu trabalho de escritor. Confira abaixo:

Como começou sua relação com o alemão?

Sou descendente de família alemã, mas de uma migração bem prematura na história da migração. Eles [meus antepassados] chegaram ao Brasil em 1850, então são da imigração do século 19, quando vários alemães, sobretudo pobres, vieram. A Alemanha fez sua reforma agrária fazendo os pobres deixarem o país. Quando criança, seu sabia falar um dialeto alemão, que tem alguns arcaísmos, porque preservou algumas marcas do alemão antigo. Apesar de ser muito diferente da língua padrão, eu nunca precisei estudar alemão.

Comecei a ler sozinho, com essa dialeto. Então, passei a comprar muitos livros.

E como você resolveu virar tradutor?

Foi uma necessidade iluminista de preencher uma série de lacunas do cânone da literatura alemã no Brasil.

Você traduz tanto clássicos quanto obras contemporâneas. Qual as dificuldades que a distância no tempo de algumas obras impõe?

É sempre mais difícil traduzir um autor clássico. Como tradutor, eu parto do pressuposto de que é preciso levar o leitor até a obra. E não trazê-la de mão beijada para o leitor, sacrificando relações, alisando complicações ou deixando palatável na língua de chegada o que não é palatável na língua de partida. Tento manter uma fidelidade. Assim, Ingo Schulze traduzido por Marcelo Backes tem que soar diferente de Arthur Schnitzler traduzido por mim.

Você menciona que começou a traduzir por uma necessidade de preencher lacunas. E hoje, como estão essas lacunas?

As coisas melhoraram muito nos últimos anos. Eu mesmo participei de vários programas [alemães] para dar conta do preenchimento delas. Faço um diálogo com os institutos Goethe do Rio e de São Paulo, por exemplo. Recentemente, se reuniu um júri de três pessoas, do qual eu fiz parte, para selecionar obras alemãs, dos primórdios aos tempos de hoje, que ainda não foram traduzidas. Apresentamos essa lista para editoras interessadas. Caso elas se mostrassem dispostas a fazer um desses clássicos, receberiam um incentivo especial. De 2009 a 2011 foi um boom, porque houve um programa semelhante, mas com obras da literatura alemã contemporânea. Ingo Schulze foi publicado nessa época.

Mas por que ainda há essas lacunas? Ainda há uma crença de que é uma língua complexa? Existe a imagem de que só é possível filosofar em alemão?

As pessoas acham que a literatura alemã é hermética, filosófica, mas há autores contemporâneos que sabem contar uma história. É uma impressão errada. Claro que uma impressão alimentada por alguns autores da tradição clássica e por boa parte da filosofia [alemã] dos séculos 18 e 19. Quando surge Meister Eckhart [filósofo e teólogo alemão], que tem necessidade de inventar palavras para expressar o que quer dizer... Talvez ele já esteja dando fundamento para o que filosoficamente acontece depois.

Isso acontece na literatura também?

O maior autor alemão do século 20, Robert Musil, é um grande filósofo. Eu digo em minhas aulas que a maior obra filosófica do século 20 é um romance, "O Homem Sem Qualidades", que eu traduziria melhor como "O Homem Sem Propriedades". Eu acho um livro superior a "O Ser e O Nada", de Sartre. E é um romance, um romance complexo. Ninguém viu o mundo lá fora com a perfeição do Musil. Estou trabalhando nas traduções dele. Publiquei "O Papel Mata Moscas" e é um dos textos mais brutais que eu já traduzi.

Tudo isso dá motivo para as pessoas acreditarem que tudo escrito em alemão é hermético, sério demais, mas é um preconceito que tentamos combater. E há coisas absurdas. Há no Brasil obras completas de Tolstói e Dostoiévski, de quem o país está mais distante geográfica e linguisticamente. Ao mesmo tempo, só 50% da obra de Goethe e 30% da obra de Schiller estão traduzidas aqui. Só um doido se atreveria a dizer que Dostoiévski e Tolstói são superiores a Goethe. Certamente não são. Podem até ser equivalentes, mas não escreveram uma obra tão decisiva para os rumos da humanidade quanto "Fausto".

Traduzir é uma forma de conhecer o alemão e o português de forma mais profunda? Serve de ajuda para ser romancista?

Com certeza. Quem traduz lê pelo menos cinco vezes. Lida em profundidade com uma obra da qual ele conhece, no meu caso, o entorno e o resto da obra do autor. Acho que traduzi 14 mil páginas até hoje. Foi uma oficina literária fundamental para mim. Sempre tive o objetivo de ser escritor e minha oficina literária foi a tradução. Você exercita o seu estilo a partir do conhecimento de outros estilos. Poucos leitores conhecer o estilo de um autor como o leitor tradutor. Depois de traduzir 14 mil páginas, se você não aprende a escrever é melhor cometer suicídio prendendo a respiração.

Qual palavra em alemão você gosta ou acha difícil de traduzir?

No alemão há muitas dessas palavras. Como traduzir a palavra "Fernweh", que surge em oposição a "Heimweh". "Heinweh" é a nostalgia ou o que nós brasileiros chamamos de saudade. No Brasil, só temos saudade do que perdemos, do que se foi, do que já era. Já "sernweh" é uma nostalgia da distância, daquilo que não é. A vontade de dar o fora, de sumir. É uma palavra poética, maravilhosa, que eu sempre traduzo por "nostalgia da distância", por não haver palavra equivalente. É uma saudade do futuro.


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