Folha de S. Paulo


depoimento

Para Wolney de Assis, só valia viver a vida com intensidade

Foi-se embora o grande Wolney de Assis. No último domingo (6), saiu de cena um daqueles atores para quem as coisas só valiam a pena se feitas com intensidade –no palco, nas telas e, em especial, na vida.

Soa até engraçado lembrar que, na primeira vez em que o encontrei, ele não tenha me causado grande impressão.

Ao contrário. Beto Brant escalava o elenco do filme "Os Matadores" (1997) e me apresentou o ator que escolhera para o papel de Alfredão, um pistoleiro veterano e desencantado, que divide uma tocaia com um aprendiz num antro na fronteira entre Brasil e Paraguai.

Wolney era uma criatura delicada, de gestos mansos e fala baixa, quase um sussurro. Achei que não daria conta da crueldade do personagem que eu havia criado no conto que o filme adaptava.

Divulgação
O ator Wolney de Assis em cena do filme brasileiro
Wolney de Assis como o pistoleiro Alfredão, em cena do filme 'Os Matadores' (1997)

Faltava algo que eu tinha visto no olhar do homem que me servira de modelo para Alfredão, um matador de verdade que conheci numa investigação jornalística na cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero.

Nos olhos daquele homem existia um brilho malévolo de ameaça. Nos olhos de Wolney, além de uma insaciável curiosidade pelo outro, só se encontrava doçura.

Mas bastou ver as primeiras imagens do filme para descobrir o quanto eu estava enganado: Wolney tinha se apossado de Alfredão –ou terá sido o contrário?–, numa atuação memorável, que colecionou prêmios em diversos festivais. A cena do duelo final entre o velho matador e o aprendiz, vivido com muita garra pelo estreante Murilo Benício, num banheiro imundo, é de arrepiar.

Difícil acreditar que se tratava da mesma pessoa que Beto me apresentara semanas antes. Um negócio meio mediúnico. A tensão dos gestos, a modulação da voz e, sobretudo, a frieza do olhar pareciam pertencer a outro –no caso, o pistoleiro real que me inspirou a criar Alfredão.

Voltei a trabalhar com Wolney no filme "O Cheiro do Ralo" (2006), dirigido por Heitor Dhalia, no qual seu personagem aceita ser humilhado na loja de penhores quando precisa vender uma caneta de estimação para comer.

Uma criatura em exato equilíbrio entre o trágico e o patético. Puro Dostoiévski. Ele ainda atuou em "Meu Mundo em Perigo" (2007), de José Eduardo Belmonte, mas a verdade é que o cinema pouco aproveitou de seu fulgurante talento.

PAIXÃO

No fundo, o teatro foi sua grande paixão. Nos últimos anos, além de atuar e dirigir, dedicava tempo e atenção à formação de novos atores, nos quais procurava incutir a mesma intensidade que sempre o caracterizou.

Gaúcho de Porto Alegre, Wolney de Assis mudou-se na juventude para São Paulo, onde participou, na década de 1960, de momentos históricos do Teatro Oficina e do Teatro de Arena. Eram os tempos mais duros da ditadura militar, o que o levou a trocar os palcos pela ação política na clandestinidade.

Quando seu grupo foi dizimado, ele precisou esconder-se na periferia da cidade, travestido de operário –e, como era bom ator, não teve dificuldade para convencer nesse papel. Mais uma de suas histórias intensas que ainda estão por ser contadas.


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