Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Nobel chinês Mo Yan cria trama picaresca com tempero poético

Uma maneira de fazer a apresentação de "As Rãs" (2009), de Mo Yan, autor chinês ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2012, é dizer que trata das mudanças operadas na China desde os anos 50, passando pelo período da Grande Fome e da Revolução Cultural, até chegar aos tempos atuais de capitalismo de Estado. Tudo visto pelos olhos de um garoto da zona rural do nordeste de Gaomi, que depois de desventuras escolares e militares, torna-se um escritor importante —dados que condizem com a biografia do próprio Mo Yan. Deve-se acrescentar que o fio condutor da narrativa são as façanhas da tia do narrador, a obstetra responsável pelo controle de natalidade na região.

O principal defeito dessa apresentação é omitir o quanto a narrativa (ou, se quiserem, a China) tem de estranha para nós. O que fica nítido já pelo gênero dela, que postula o épico, para lançar-se ao cômico e, mais ainda, ao caricato. Tem qualquer coisa da novela picaresca, mas temperada com um gosto poético, descritivo e melodramático que lhe são alheios.

AFP
O escritor chinês Mo Yan, o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2012, durante evento em Haikou, província de Hainan, sul da China. *** This picture taken on March 25, 2012, shows Chinese writer Mo Yan, the 2012 Nobel Literature Prize winner, attending a novel competition in Haikou, in south China's Hainan province. The Swedish Academy announced on October 11, 2012 that Chinese author Mo Yan won the Nobel Literature Prize
O escritor chinês Mo Yan, o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2012, durante evento em Haikou, sul da China

Alguns pensaram poder atribuir-lhe traços do "realismo mágico" latino-americano e não poucos compararam Mo Yan a García Márques, o que, em parte, deriva de uma das piadas que lança no livro. Mas Mo Yan não tem fins políticos, nem adere a causas coletivas e populares. As suas personagens desconhecem gestos soberanos.

O seu mundo está ao pé das plantações e do exército miúdo, de modo que ninguém tem opiniões sobre o que quer que esteja além de comer e beber tudo o que possa, conseguir um cônjuge o menos ruim possível, ter ao menos um filho homem para prolongar a linhagem, e, enfim, obter algum conforto na vida, aproveitando qualquer oportunidade surgida para trabalhar menos e ter direito a comer comida comercial, ou seja, pela qual possa pagar, sem ter de plantar ele mesmo.

Para fazer esta resenha tentando respeitar a estranheza do objeto, conversei com duas estudantes chinesas gentilíssimas que fazem doutorado na Unicamp, Fan Xing e Ma Lin. Repasso-lhes, aqui, uma forma alternativa de apresentação do livro que simplifica e deturpa o que pacientemente me explicaram, utilizando, como exemplo exemplar, o ideograma que dá título à novela, a saber: "Ù".

Como se sabe, a transcrição dele, "wa", admite diferentes significados e tonalidades. Assim, a palavra "rã" em chinês é Ù (w, com primeira tonalidade); a palavra "bebê" é  (wá, com a segunda tonalidade), enquanto o choro de bebê e o canto das rãs são Ç (w, primeira tonalidade), que explora obviamente um som onomatopaico, que talvez pudesse ser traduzido em "português" por "buá"; além disso, a deusa criadora dos homens é s2 (NÚ w, onde o último caráter, embora tendo forma diversa, tem pronúncia idêntica ao "wa" de primeira tonalidade).

Ou seja, em "wa" estão embutidas ao menos quatro palavras diferentes e é a progressiva articulação delas que dita o andamento da novela. Rãs botam ovos, girinos são espermatozoides, uma multidão de rãs e girinos atropela-se no pântano pegajoso regido pela procriação. Não olvidar que "Girino" é o pseudônimo do narrador que inventa a história toda.

AS RÃS
AUTOR Mo Yan
TRADUÇÃO Amilton Reis
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 52,90 (496 págs.) e R$ 36,90 (e-book)

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Unicamp.


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