Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Musicalidade de Murilo Mendes caminha entre rigidez e leveza

A poesia de Murilo Mendes parece um ardiloso paradoxo: surpreende pelas imagens, embora projete ora a vertente católica, ora a aresta surrealista, ora o modernista maduro com seu desejo de totalidade.

"A nuvem andante acolhe o pássaro/ Que saiu da estátua de pedra./ Sou aquela nuvem andante,/ O pássaro e a estátua de pedra." Os versos estão em "As Metamorfoses", de 1944, e bem poderiam definir o autorretrato do poeta: uma "nuvem errante" que circula entre o Rio de Janeiro, as Minas Gerais e os países da Europa que visitou e onde morou por longos períodos. "Nuvem errante" porque o poeta variou muitíssimo no tempo e no espaço, e às vezes se contradisse dentro do mesmo livro.

Num artigo no ano de lançamento de "As Metamorfoses", Lauro Escorel interpreta argutamente a musicalidade do poeta, ao explicar que, muito mais do que a melodia verbal, persistia em Murilo Mendes "uma atmosfera anímica, que confere uma qualidade singular à sua visão do mundo." A música desencadearia as "visões oníricas" que estão presentes em todos os poemas do livro, às vezes em tom apocalíptico.

Divulgação
ORG XMIT: 412501_0.tif O poeta mineiro Murilo Mendes e sua mulher, Saudade. (Divulgação)
O poeta mineiro Murilo Mendes (1901-1975) com a mulher, Maria da Saudade, em foto sem data

Eis aqui outro paradoxo muriliano: a música está a serviço da imagem, a melopeia conduz à fanopeia, e tudo parece uma força centrífuga a lançar longe as disparidades.

LIRISMO AMOROSO

Por outro lado, é preciso concordar com Murilo Marcondes Moura quando afirma, no posfácio ao livro, que "As Metamorfoses" "é dos grandes livros da poesia lírico-amorosa do autor" –e, novo paradoxo, contexto em que o poeta dá acesso, de modo mais direto, apesar da ebulição das imagens, à sua mensagem.

Existe um veio subterrâneo em "As Metamorfoses" que merece atenção: a experiência da Segunda Guerra. No ponto em que Drummond salientará o aspecto político, em "A Rosa do Povo" (1945), Mendes exibirá a despedida de uma cultura, o fim da inocência, o adeus a muito daquilo que formara a sua sensibilidade.

Já os treze poemas de "Siciliana" e o bem estruturado livro "Tempo Espanhol" (1959) pertencem a outro momento –terminada a guerra, o poeta viaja intensamente pela Europa, por sua paisagem e por sua cultura, o que trará importantes mudanças na sua poética. Atenua-se o surrealismo e o modo altissonante; afirmam-se os versos precisos, mais descritivos e referenciais: nesses livros, os poemas são escritos na forma de homenagens, de celebração contida do que o poeta está vendo e vivenciando.

Surgem as fórmulas: "Quevedo, a angústia do tempo/Informa tua visão concreta."

Há muito a comentar sobre o tópico dessa "visão concreta". Assim como a experiência espanhola trouxe elementos definitivos para a poética de João Cabral (por exemplo, o cante a palo seco, o sentido de composição, o realismo à maneira de Gonzalo de Berceo), o tempo espanhol de Mendes faz o poeta voltar-se para a concretude e para o ordenamento.

O que o poeta escreve sobre Goya ("Tem a força de ataque do animal / E a lucidez objetiva do cientista") aplica-se bem ao país que está visitando e, surpreendentemente, à poesia que faz sobre o país.

Haroldo de Campos captou bem essa mudança de curso ao designar o "mundo substantivo" que havia sido alcançado: "'Tempo Espanhol' é um livro domado e severo, de maturada maturidade. Poesia magra e dura, sem nenhuma concessão ao sentimentalismo superficial dos melancólicos escudeiros da poesia-liricizante, da poesia-Gemüt ('coração')."

É impressionante acompanhar a arquitetura da poesia. Em "Tempo Espanhol", um poema ocasional como "O Chofer de Barcelona" se transforma em ambiente de reflexão para esse Murilo Mendes transformado pela experiência: um poeta preocupado com a política e a sociedade, mas que não deixa de desejar o infinito e a redenção.

AS METAMORFOSES / SICILIANA + TEMPO ESPANHOL
AUTOR Murilo Mendes
EDITORA Cosac Naify
QUANTO R$ 36,90 cada

FELIPE FORTUNA é poeta e diplomata, autor de "O Mundo à Solta" (Topbooks), entre outros.


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