Folha de S. Paulo


Recluso há anos, Raduan Nassar ganha traduções para o inglês em aniversário

Não vai ter bolo nem vela. Quem ligar para Raduan Nassar nesta sexta (27), dia em que completa 80 anos, também não vai conseguir falar com ele, porque o telefone do escritor está desligado. No seu aniversário, Raduan vai fazer o mesmo que tem feito há mais de 30 anos: ficar em silêncio.

"Eu tenho muitos defeitos de personalidade, menos um, pelo menos eu acho: não sou cabotino", ri o escritor ao telefone, para justificar seu desejo de não dar entrevistas. "Costumo desligar o telefone nesse dia."

Raduan afirma se sentir "constrangido" com esse negócio de homenagem. Por isso, o autor de "Lavoura Arcaica" (1975) e "Um Copo de Cólera" (1978) tampouco apareceu no colóquio que a USP promoveu na segunda (23) e na terça (24) para celebrar a data –apesar da insistência dos organizadores.

Jorge Araújo/Folhapress
ORG XMIT: 431601_0.tif SÃO PAULO, SP, BRASIL, 17-03-1989: Literatura: o escritor Raduan Nassar, autor do livro
O escritor em foto de 1989

Não houvesse Raduan abandonado a literatura nos anos 1980 e virado fazendeiro –e em seguida doado sua fazenda à Universidade Federal de São Carlos–, ele teria motivos de sobra para comemorar: em 7 de janeiro de 2016, sua obra chega pela primeira vez ao público de língua inglesa.

É quando a Penguin do Reino Unido lança, ao mesmo tempo, as traduções de "Lavoura...", por Karen Sotelino, e "Um copo...", por Stefan Tobler –ambos pela prestigiosa coleção Penguin Contemporary Classics.

"Ele tentou boicotar de toda forma as edições. Reclamava da capa, do contrato...", ri Luiz Schwarcz, diretor do grupo Companhia das Letras. "Ainda dizia: 'Quando sair eu não vou estar mais nem aqui.' E eu respondia: 'Então por que você está se preocupando?"

Também em janeiro, sai a primeira tradução em espanhol de "Um Copo de Cólera", feita por Juan Pablo Villalobos para a mexicana Sexto Piso. Villalobos trabalha ainda numa nova tradução de "Lavoura" para o idioma, a sair em 2017. A última é de 1982.

As traduções são a novidade. Mas a notícia que os leitores queriam ouvir –que Raduan tem inéditos na gaveta–não pode ser confirmada.

"Eu alimentei essa fantasia por anos. Hoje acho que, se o Raduan escreveu, ele destruiu [os textos]", diz Schwarcz.

Ao leitor, o recado de Raduan é o mesmo do narrador do conto "O Ventre Seco" (1970): "Já cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca de seu barulho, dou-lhe meu silêncio".

SEM ESTUDO CRÍTICO

Mesmo conhecido como um clássico contemporâneo do Brasil, Raduan Nassar chega aos 80 anos sem que nenhum dos grandes nomes da crítica literária brasileira –Antônio Cândido, Roberto Schwarz, Silviano Santiago, Davi Arrigucci Jr., entre outros – tenha escrito algo de fôlego sobre sua obra.

Alfredo Bosi, outro dos grandes, cita o autor de passagem em "História Concisa da Literatura Brasileira". O principal texto de referência sobre Raduan é "Da Cólera ao Silêncio", publicado por Leyla Perrone-Moisés na edição em homenagem ao escritor dos "Cadernos de Literatura Brasileira" (Instituto Moreira Salles).

"No meu caso foi um desencontro ocasional, eu estava metido em outras coisas. Ainda vou escrever", promete Davi Arrigucci Jr, amigo de Raduan. "Não foi falta de interesse. Muitas vezes cobrei dele livros novos. Mas hoje lhe dou razão [em ter se recolhido]."

Já Silviano Santiago diz que sempre escreveu a pedido. "Isso é uma coisa delicada na minha carreira, sempre tratei a crítica como encomenda e nunca me pediram uma análise sobre ele", diz o crítico.

"É uma obra de inegável qualidade. Mas tem essa coisa delicada. O recolhimento [do autor] meio cedo talvez seja embaraçoso para a crítica."

Na academia, a impressão de quem trabalha a obra nassariana é a mesma: os livros do escritor são pouco estudados. Ainda assim, o colóquio da USP no começo da semana aponta o surgimento de novos estudos críticos.

Moacyr Lopes Jr./Folhapress.
SÃO PAULO, SP, BRASIL, 17-05-2015: O escritor Raduan Nassar, autor de
Raduan Nassar em sua casa em São Paulo, em foto de 1985

Afinal, a obra de Raduan é breve, resumida em "Lavoura...", "Um Copo...", "Menina a Caminho e Outros Textos" –e o ensaio "A Corrente do Esforço Humano", publicado na Alemanha em 1987 e inédito em português.

De todo modo, nada disso parece interessar a Raduan Nassar –que continua alheio aos livros. Embora raro, às vezes até recebe leitores que batem à sua porta querendo conversar. A eles, o escritor repete o de sempre: não quer mais contato com a literatura.

"Entre os admiradores, todo mundo sabe o endereço dele", diz o advogado Daniel Granato, 27, que esteve por 15 minutos com Raduan, em junho. "Ele me disse que recebe muitos livros pelo correio, mas não lê nada."

As aparições, porém, seguem raras. As últimas de que se tem notícia: uma na Balada Literária, em 2012, na qual era autor homenageado, e outra em um vídeo no YouTube de apoio à reeleição de Dilma Rousseff, no ano passado.

Mesmo recolhido da vida literária, Raduan é pai de outros escritores. O mais evidente é Milton Hatoum, que também tematiza não só imigração libanesa no Brasil, só que em Manaus, mas a família.

Raduan, aliás, leu os originais de "Relato de Um Certo oriente" e "Dois Irmãos", dois romances famosos de seu herdeiro manauara.

Hoje, nem o fato de ter reconhecimento tira Raduan do casulo. Seus dois romances foram adaptados para o cinema: "Um Copo..." em 1999, por Aluizio Abranches; e "Lavoura..." em 2001, por Luiz Fernando Carvalho. Só continua o mistério de por que o autor não escreve mais.

"Todos os atos dele são de profundo amor à literatura. Até a raiva que ele sente vem dos momentos em que ele julga não ter sido correspondido nesse amor", diz Luiz Schwarcz.


Endereço da página: