Folha de S. Paulo


'O Turista Aprendiz', de Mário de Andrade, é relançado

Foram mais de 30 anos fora de catálogo, mas agora um dos relatos de viagem mais importantes da literatura brasileira está de volta. "O Turista Aprendiz", diário de duas viagens de Mário de Andrade -uma para a Amazônia e outra para o Nordeste-, acaba de ser relançado.

Organizado em 1976 por Telê Ancona Lopes, pesquisadora da USP e uma das maiores especialistas na obra andradiana do país, "O Turista..." traz as impressões de Mário nas duas expedições. A primeira, que ocorreu de maio a agosto de 1927, rendeu material que depois foi parar em "Macunaíma". A segunda, com caráter mais etnográfico, feita entre novembro de 1928 e fevereiro de 1929, é um registro da cultura popular no período.

O relançamento é uma parceria entre o Ieb-Usp (Instituto de Estudos Brasileiros) e o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Além da professora Telê, a nova edição é organizada também por Tatiana Longo Figueiredo.

Divulgação
Mário de Andrade na Praia do Chapéu Virado, em maio de 1927, no Pará

Durante as viagens, Mário também se arriscou como fotógrafo, usando sua "Codaque", como chamava sua câmera.

A nova edição de "O Turista Aprendiz" traz um CD-ROM com essas imagens, que, além de registrarem os locais por onde ele passou, mostram o modernista em momentos descontraídos -às vezes usando trajes de banho, como na Praia do Chapéu Virado, no Pará.

Um DVD traz o documentário "A Casa de Mário" , dirigido por Luiz Bargman, sobre o local onde o escritor viveu em São Paulo, na rua Lopes Chaves.

"São duas viagens muito importantes. Além da importância como documentação, é um saboroso guia de viagens", afirma Eduardo Jardim, biógrafo do modernista. "O livro continua importante para a academia, mas também pode alcançar um público mais amplo."

Jardim ressalta ainda que, ao fazer os registros etnográficos, Mário sabia que aquelas manifestações populares podiam desaparecer com a urbanização do Brasil.

Algumas passagens de "O Turista Aprendiz" hoje são lendárias, como a que o modernista conta como teve seu "corpo fechado" em uma casa de catimbó de Natal. "Isso começou me divertindo, o ritmo era gostoso, e, defumação principiada, me tomou uma prodigiosa vontade de rir", escreve o autor sobre a cerimônia religiosa.

Mário de Andrade faz um registro das roupas, das comidas e dos hábitos dos locais que visita. Além da música, é claro, parte importante de "O Turista Aprendiz" -como as canções dos carregadores de piano do sertão ou dos mendigos.

"Mário mostra o Brasil como uma unidade cheia de diversidade, mas uma diversidade cheia de tensões", diz Eduardo Jardim.

LEIA TRECHOS DO DIÁRIO:

Natal, 28 de dezembro de 1928

Hoje, última sexta-feira do ano, apesar do dia ser par, era muito propício para coisas de feitiçaria. Por isso aproveitei pra "fechar o corpo" no catimbó de dona Plastina, lá no fundo dum bairro pobre, sem iluminação, sem bonde, branquejado pelo areão das dunas. (...) Não tem mais melefício nem da terra nem das águas, nem de por baixo da terra nem dos ares que me venha atentar, estou de corpo fechado. Mestre Xaramundi desceu pela rama da jurema, limpador de "matéria" (corpo) e me alimpou."

Automóvel, 3 de fevereiro de 1929

Serão 13 horas talvez, não sei... Ando já meio perdendo a noção de horário nesta vida viajeira. Até a noção dos nomes topográficos. Me esqueço de perguntar por onde passo, ando misturando tanto as coisas que deixei de ser um indivíduo compreensivo para me tornar essencialmente, unicamente mesmo, sensitivo."


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