Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Arrigo une Freud, Schoenberg e música eletrônica alucinante

Em Viena, no início do século 20, o jovem músico Arnold Schoenberg (1874-1951) não morava muito longe da Bergasse 19, casa-consultório de Sigmund Freud (1856-1939). Ao que se sabe, eles não tiveram contato direto.

Com a ópera "O Homem dos Crocodilos", que estreia nesta quarta-feira (18), no Theatro São Pedro –junto com "Édipo Rei", de Igor Stravinski (1882-1971)–, o paranaense-paulistano Arrigo Barnabé, 64, estabelece relações perenes entre os dois vizinhos.

A música está a cargo de uma banda camerística que evoca a sonoridade de "Pierrot Lunaire", obra emblemática do atonalismo expressionista de Schoenberg, também adotado por Arrigo.

Há, no entanto, diferenças importantes, como a ausência da flauta e o acréscimo de percussão e, sobretudo, de uma guitarra elétrica que adiciona novos estranhamentos às dissonâncias acústicas.

Yuri Tavares/Divulgação
Ensaio da ópera
Ensaio da ópera 'O Homem dos Crocodilos', de Arrigo Barnabé, no Theatro São Pedro

A escrita musical-teatral de Arrigo é segura e costura com categoria a narrativa de um caso psicanalítico inspirado diretamente em Freud (com libreto do argentino Alberto Muñoz), enriquecido por uma história em quadrinhos especialmente criada por Luiz Gê.

Em uma das cenas finais, a música eletrônica alucinante composta como trilha para o gibi (que a plateia recebe em mãos) é um passo além de "Tubarões Voadores", parceria Arrigo-Gê de 1984.

O tempo de leitura dos quadrinhos –tão pessoal– tem de enfrentar a medida exata do fluxo musical. Atos falhos, sonhos, alucinações, voyeurismo e complexo de Édipo recebem um tratamento musical simultaneamente estranho e bem-humorado.

Duas árias da personagem Céline (mãe do protagonista) são realizações de mestres da canção brasileira: lá estão ecos de Villa-Lobos (1887-1959) e Lupicínio Rodrigues (1914-74), mas também do próprio Arrigo de "Lenda", "Sinhazinha em Chamas" e "Londrina".

A presença performática de Arrigo no palco –com os traços da personagem que se confunde com a sua própria biografia desde "Clara Crocodilo" (1980)– será aproveitada também para a narração de "Édipo Rei", de Stravinski.

TECLA SAP

Na obra do russo cantada em latim (estreada em 1927), o libretista francês Jean Cocteau (1889-1963) prevê uma narração na língua da audiência (para nós, o português).

Mas não há nenhuma referência a Freud em Stravisnki-Cocteau. A eles interessa unicamente a tragédia de Sófocles, evitando toda interpretação contemporânea do mito. Stravinski cria uma música distante, estática, como se revolvesse as ruínas de outras eras.

São destaques dos elencos Paulo Mandarino (Édipo) e Eliane Coelho (Jocasta), uma das mais importantes cantoras brasileiras em atividade. Em "O Homem dos Crocodilos", Denise de Freitas (Céline) e Thiago Pinheiro (Antonio).


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