Folha de S. Paulo


Livro desvenda romance de Joaquim Nabuco com mulher emancipada

"O coração após certo momento da vida é qual palimpsesto; nada se pode escrever nele sem primeiro raspar o texto da época anterior", diz o aforismo atribuído a Joaquim Nabuco (1849-1910).

Faria sentido se, ao dizê-la, o político pernambucano pensasse sobre seu próprio coração, quando se casou, em 1879, com Evelina Torres Soares Ribeiro e encerrou um romance de 14 anos com Eufrásia Teixeira Leite.

É sobre esse namoro, que quase virou casamento, e a época em que ele aconteceu que fala o décimo romance de Ana Maria Machado, "Um Mapa Todo Seu".

Misturando imaginação e pesquisa histórica, Machado tece uma versão desse relacionamento, do primeiro olhar que trocaram, a bordo do navio Chimborazo, a caminho da Europa, até a última carta, ela, emancipada como mulher pelas próprias mãos, ele, abolicionista.

Divulgação
ORG XMIT: 154901_0.tif Eufrásia Teixeira Leite, mulher independente, que foi um dos amores do escritor abolicionista Joaqim Nabuco. (Divulgaçaõ)
Eufrásia Teixeira Leite, que se relacionou com o político por 14 anos, em pintura de Carolus-Duran

Machado conta que não foi fácil reconstituir a história porque Eufrásia não foi muito estudada por historiadores e Nabuco deixou pouco sobre ela para a posteridade.

"De vez em quando aparecem menções em cartas a amigos, mas eram de trabalho. Ainda assim, vamos montando as peças", conta Machado.

No livro, Eufrásia, ou Zizinha, mostra-se uma feminista, ainda que a palavra não apareça no texto.

Nasceu em 1850, numa família aristocrática de Vassouras (RJ) –das mais ricas do Brasil à época. Viu-se órfã aos 21.

Acervo da Fundação Joaquim Nabuco
ORG XMIT: 374001_0.tif Retrato do pensador e diplomata pernambucano Joaquim Nabuco, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. (Foto: Acervo da Fundação Joaquim Nabuco)
O abolicionista Joaquim Nabuco

Munida de uma herança que a desobrigava de se casar, via o matrimônio com suspeita. Preferia não ter de obedecer a ninguém e investir seu próprio dinheiro, o que fez com sucesso. Para fugir do patriarcado, da pressão da família, quis, desde cedo, estabelecer-se em Paris.

"Para ele, a emancipação feminina não existia. Não era uma questão. Mas, para ela, era, embora fosse muito tênue, em termos pessoais e individuais. Ela luta do jeito que pode", diz Machado.

Um Mapa Todo Seu
Ana Maria Machado
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Nabuco, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, tinha um laço forte com o país, selado por sua preocupação com a abolição.

O livro acompanha a formação do político numa época em que, como diz o narrador, "ex-escravos possuíam escravos. Abolicionistas conhecidos, também".

A efervescência política daquele tempo, quando a República estava sendo proclamada, a abolição da escravidão, discutida e implementada, faz-se presente no livro.

"Gosto da fixar situações em momentos de significação histórica. Acho que as relações entre as pessoas são reflexo da situação política. Ela se exerce também na relação interpessoal, e nesse casal, ela foi crucial", diz Machado.

Acervo da Fundação Joaquim Nabuco
ORG XMIT: 385201_0.tif Retrato de Evelina Nabuco de Araújo, mulher do diplomata pernambucano Joaquim Nabuco. (Foto: Acervo da Fundação Joaquim Nabuco)
Evelina Torres Soares Ribeiro, com quem Nabuco se casou em 1879

Nesse meio-tempo, dá para adivinhar as hipóteses de Machado sobre o término: a incompreensão, da parte dele, do desejo de emancipação dela; os ciúmes, da parte dela, do comportamento mulherengo de "Quincas, o Belo", como o político era conhecido.

O que é certo é que os dois, juntos ou separados, foram um pouco cartógrafos: "Eles se aventuraram por um território não mapeado, ela, como mulher, ele, como abolicionista. Não havia cartografia para o que fizeram. Ninguém tinha passado por ali", diz Machado. Daí o título do romance.


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