Folha de S. Paulo


Mulheres dirigem 16,5% dos filmes nacionais; leia relatos sobre machismo no cinema

"Shit People Say to Women Directors" (merdas que as pessoas dizem para diretoras mulheres) é um site americano que reúne sandices ouvidas por elas nos bastidores do cinema –como a roteirista aconselhada a aceitar cachê abaixo da média, "um bom preço para garotas".

Uma versão brasileira não faria feio. A Folha perguntou se e como o machismo é sentido por mulheres que trabalham na área. Embora a retomada do cinema nacional, em 1995, tenha sido marcada por uma diretora, Carla Camurati ("Carlota Joaquina"), 16,5% dos 1.211 filmes lançados desde então foram direções exclusivamente femininas (excluídos casos de codireção com homens).

Em 2014, mulheres estiveram à frente de uma em cada dez obras que entraram em cartaz, a pior média desde 2004. As produções femininas ocupam no máximo, em média, 34 salas de cinema, contra 56 para eles (no período entre 1995 e 2014).

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"Montagem é ótimo para vocês. Vem da costura, tem a ver com mulher." Essa Anita Rocha da Silveira, 30, ouviu de um professor do curso de cinema na PUC-RJ. Ela ignorou a "dica", virou diretora e foi premiada no Festival de Veneza por seu longa de estreia, "Mate-me Por Favor".

"Você dirige bem para uma mulher." Frase que Gabriela Amaral Almeida escutou e tomou como o "preconceito mais daninho": suposto elogio "com forte carga misógina". Ela acabou de rodar o primeiro filme, "Animal Cordial", sobre um assalto a um restaurante (com Irandhir Santos e Camila Morgado).

Para Anna Muylaert, 51, foi o que deixou de ouvir. "Após fechar o negócio pra representar 'Que Horas Ela Volta?', um distribuidor americano quis ter uma reunião comigo e com meu coprodutor, só para elogiar o filme. Mas só falava com ele. Não conseguia me ver como algo além de uma assistente, mesmo sabendo que eu era a roteirista e diretora", diz. Ela compara sua experiência com uma cena vivida pela personagem de Regina Casé em seu longa: "Parecia a Val servindo canapé na festa da dona Bárbara. Eu estava ali, invisível".

"Por que raios produzir um filme sobre uma grávida? Que assunto mais desinteressante." Um distribuidor questionou assim o produtor de "Olmo e a Gaivota", também sem enxergar Petra Costa, 32, ao lado, em reunião num bar em Buenos Aires –é ela a diretora do filme que acompanha a gestação de uma atriz, laureado no Festival de Locarno.

Petra conta que foi um assédio –contra sua irmã Elena– que a levou para o cinema. A história da jovem que foi para Nova York tentar ser atriz e, deprimida, se matou é contada em documentário homônimo da caçula –sua estreia na direção, em 2012.

"Quando ela tinha 15 anos, o diretor de uma companhia teatral respeitada a assediou sexualmente, no apartamento dele. Pela primeira vez, minha mãe viu Elena chorar copiosamente."

Petra reproduz o que a irmã disse na época ter ouvido do homem, acima dos 50 anos, ao sair do grupo: "Eu te amaldiçoo a ser infeliz para o resto da sua vida". Esse capítulo da trajetória de Elena ficou de fora do filme.

Assédios também acontecem no escurinho dos sets de cinema. Anita Rocha diz que aos 20, quando fazia assistência de direção, um ator famoso que prefere não identificar "chegava" direto. Um dia, pôs a mão em sua coxa. "Comecei a ir de bermudão, camisa larga. Coisa horrível ter de me vestir como eu não gostaria."

Hoje, a diretora de "Mate-me Por Favor" acha que não deixaria barato um passe desses. "Só que, mais nova, tinha muito medo de perder trabalho, ser mal vista."

Temor similar ao de Janaína Castro, 27. Ela foi assistente de produção num curta de uma mulher. Seu superior imediato, homem, quis "puni-la" por chegar 15 minutos atrasada.

"Na falta de grana pra pagar figurante, ele forçou uma barra para que eu fizesse figuração de maiô." Naquele dia foi pior. "O cara disse: 'Vou até colocar a galera da pesada [os eletricistas e maquinistas] para ficar bem atrás de você, como castigo'."

ELA FAZ CINEMA?

Discussões sobre o feminismo vieram em onda nos últimos dias. Apareceram na prova do Enem. Em protestos contra o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), autor de projeto de lei que dificulta o aborto legal. Na campanha #meuprimeiroassédio –após homens fazerem comentários libidinosos sobre uma cozinheira do "MasterChef Júnior", mulheres foram à internet relatar abusos.

E teve, na semana passada, a campanha #AgoraÉqueSãoElas, na qual colunistas homens "emprestaram" seu espaço para textos femininos.

No cinema brasileiro, o tema ganhou fôlego em agosto, após um evento desastroso em torno de "Que Horas Ela Volta?", no Recife. Anna Muylaert ainda não havia sido confirmada como a primeira mulher em 30 anos a representar o país no Oscar.

Ela está na pré-lista de 81 nomes para a categoria melhor filme estrangeiro. Só sete dessas obras são dirigidas unicamente por mulheres.

Seu longa, que já conquistara um prêmio no Festival de Sundance (para as protagonistas Regina Casé e Camila Márdila), virou notícia por outro motivo. Após beberem, dois colegas na plateia interromperam o debate: os cineastas Lírio Ferreira e Cláudio Assis (ex-namorado de Anna), que chamou Regina Casé de gorda.

"Foi ali que a coisa fedeu. É trabalhar uma visão feminina machista. Toda mulher tem que ser alta, magra, loira e de cabelos lisos. Quem está fora é gorda, baixa, feia e de cabelo ruim", diz Anna. "O ouro vira cocô, entende?"

Para ela, os homens são "viciados em protagonismo", enquanto mulheres "tomam na mamadeira a regra da subserviência feminina".

A opinião ecoa a da americana Jennifer Lawrence, 25.

Recentemente, a campeã do blockbuster "Jogos Vorazes" criticou a disparidade de salários entre atores e atrizes e se disse "farta" de precisar encontrar "uma maneira adorável de dizer o que penso" –as brasileiras entrevistadas pela Folha também reclamam de não poder dar um pio sem que sejam acusadas de "histeria" ou "estar de TPM".

Uma colunista do jornal "Washington Post" levou a ironia adiante e imaginou como discursos históricos soariam na voz do que se espera de uma mulher "sã". "Eu tenho um sonho!", de Martin Luther King, iria por aí: "Hmmm, me desculpa, tive esta ideia. Provavelmente é tolice, mas [...] tive esta espécie de visão sobre o futuro".


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