Folha de S. Paulo


Condenação de produtora de 'tapinha não dói' acirra debate sobre censura

tapinha

"A ideia veio da minha filha. Quando ela era pequena, eu dei um tapinha nela, de brincadeira. Ela disse: 'pai, um tapinha não dói!'", conta MC Naldinho, 38, à Folha.

Foi dessa frase da menina, diz o carioca, que nasceu "Tapinha", hit do funk no início do século. Lançada em 2001, a música do refrão "Dói, um tapinha não dói" alçou Naldinho e MC Bela, sua então companheira, ao estrelato, foi tocada por Caetano Veloso e Ivete Sangalo e causou uma polêmica tão grande quanto seu sucesso.

Em 2002, a produtora Furacão 2000 foi alvo de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal a pedido da ONG Themis, movimento de advogadas feministas do Rio Grande do Sul.

Condenada a uma multa de R$ 500 mil, a produtora recorreu e conseguiu reverter a sentença, mas coube recurso e, em outubro deste ano, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região decidiu pela condenação.

Ricardo Borges/Folhapress
MC Naldinho, autor do funk 'Tapinha', em Bangu, no Rio de Janeiro
MC Naldinho, autor do funk 'Tapinha', em Bangu, no Rio de Janeiro

A alegação é que versos como "se te bota maluquinha, um tapinha eu vou te dar" e "vou visando tua bundinha, maluquinho pra apertar" incitam a violência contra a mulher. Procurada, a Furacão afirmou apenas que deve recorrer –o caso segue agora para Brasília.

Para Naldinho, a música não é violenta nem tampouco sexual. Hoje evangélico, ele canta trechos do hit em cultos.

A mesma ação pedia ainda condenação da União (sob alegação de o que o Estado deveria ser mais vigilante em relação a violação de direitos) e da Sony Music pela música "Tapa na Cara", do Pagod'Art, também acusado de incitar a violência contra a mulher.

Ambas foram absolvidas em primeira instância.

Isabela Carnevale/TV Globo
A dupla MC Bela e MC Naldinho durante apresentação no programa 'Altas Horas', em 2001
A dupla MC Bela e MC Naldinho durante apresentação no programa 'Altas Horas', em 2001

"O juiz entendeu que como a mulher da música pedia para apanhar, não seria atentatória", afirma o desembargador Luís Alberto Aurvalle, relator do processo.

Não é a primeira vez que a Sony sofre uma ação civil pública do tipo.

Em 2011, foi condenada a pagar R$ 1,2 milhão de indenização ao fundo federal de Danos Morais Difusos por causa de "Veja os Cabelos Dela", de 1997, interpretada pelo atual deputado federal Tiririca (PR-SP) e acusada de racismo. A música tem versos como "essa nega fede, fede de lascar".

CARÁTER PEDAGÓGICO

Casos como esses levantam debates acalorados sobre os limites da interferência do Judiciário na cultura.

Para Aurvalle, a decisão contra a Furacão 2000 tem um caráter pedagógico. "As músicas passam uma ideia de que bater em mulher é normal", diz. "Vende-se esse conceito de que não se pode coibir qualquer tipo de manifestação artística, e não é bem assim."

O presidente da OAB de São Paulo, Marcos da Costa, diz que as decisões têm de ser muito bem fundamentadas. "Ou correm o risco de serem censura do que não gostamos."

Isso não significa que casos extremos não devam ser tratados no Judiciário, diz.

Em 2003, por exemplo, o Supremo manteve a sentença de dois anos de reclusão para o gaúcho Siegfried Ellwanger Castan, autor de "Holocausto Judeu ou Alemão?", que nega o genocídio nazista. As edições do livro foram proibidas.

"Mas isso deve ser a exceção da exceção", diz Costa. "A regra deve ser a liberdade de manifestação".

Para ele, mesmo casos em que não há retirada de circulação do produto podem ser considerados censura caso haja uma inviabilização financeira. "Não é a censura tradicional, mas se caracteriza assim se é colocada uma dificuldade financeira que impede a execução da música, por exemplo."

O desembargador gaúcho discorda. Segundo ele, ainda que não caiba ao Judiciário exercer o controle prévio sobre manifestações culturais, após a colocação do produto em circulação "ele pode e deve sofrer crivo da Justiça".

"Os direitos fundamentais não são absolutos, questionar é viável dentro do nosso sistema constitucional. Não é censura e não atenta contra a democracia", conclui.


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