Folha de S. Paulo


Zélia Duncan faz 'samba apocalíptico' em primeira incursão pelo gênero

Zélia Duncan, 51, tem um apocalipse em comum com a octogenária Elza Soares. A veterana gravou recentemente o disco "A Mulher do Fim do Mundo". A cantora caçula, que há anos se sentia "cutucada pelo samba", lançou sua primeira incursão no gênero, "Antes do Mundo Acabar".

"Gostei disso. A gente tá na beira do abismo e voa", diz Zélia, que tatuou semanas atrás balões de festa na perna. Com Zeca Baleiro, ela compôs a faixa-título do novo álbum, que vai assim: "Antes do mundo afundar em si mesmo/ Me deixa te olhar sem medo".

É com certo temor que ela tem espiado os noticiários. A hecatombe que evoca, afirma, "tem a ver com o momento em que o mundo está. Estamos quase vivendo o 'day after' [dia seguinte ao fim de tudo]".

Maus exemplos vêm às pencas. Zélia lembra do homem que morreu ao protestar contra o assassinato de um jovem pela PM, no Rio –jogou uma pedra contra um ônibus e teve a veia femoral da perna perfurada–, e das mulheres escravizadas pelo Estado Islâmico.

Zanone Fraissat/Folhapress
SAO PAULO/SP BRASIL. 18/09/2015 - Zélia Duncan e Mart nalia no Show em homenagem a Cassia Eller no palco Sunset no primeiro dia do Rock In Rio.(foto: Zanone Fraissat/FOLHAPRESS, COTIDIANO)***EXCLUSIVO***
Zélia Duncan em apresentação no Rock In Rio, em setembro deste ano

Cita ainda "os caras que estão lá [no Congresso brasileiro] e se dizem religiosos, mas só querem poder", em alusão a deputados evangélicos como Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e Marco Feliciano (PSC-SP).

"Dogmas me dão nervoso", diz a cantora, no quarto de um hotel cinco estrelas em São Paulo. "Eu gostar de chocolate e você de baunilha nos torna inimigos mortais? Sério?"

TAPAS E BEIJOS

Em março, Zélia publicou na internet o texto "Um Beijo, Um Só", endereçado aos "indignados de plantão". Reagia ao boicote pregado por líderes religiosos contra a novela "Babilônia" (Globo), que levou ao ar um beijo entre as personagens de Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg.

"Será que as pessoas não sabem que os gays também envelhecem, quando não são assassinados por monstros e sociedades homofóbicas e hipócritas?", escreveu à época.

No começo do ano, a união com a atriz Claudia Netto (que protagonizou o musical "Se Eu Fosse Você") virou tema de site de fofocas. Zélia usa aliança e se derrete pela gata Chiquinha que o casal tem. Vê, contudo, mais um sinal do fim dos tempos que as pessoas armem tamanho alvoroço em torno de sua vida pessoal.

Ouça "Antes do Mundo Acabar", de Zélia Duncan

"Nunca fingi ser quem não sou, sempre achei ridículo aparecer com namorado falso. Tô aí apoiando o Jean [Wyllys, deputado pró-LGBT]. Mas tenho absolutamente nada a esconder e tudo a preservar."

Ela se diz impressionada com erros reproduzidos pela mídia, como detalhes inverídicos de uma cerimônia de casamento entre ela e Claudia.

Fofocas, compara, são como um travesseiro furado: "As penas se espalham, e você nunca consegue catar todas".

SAMBA MÍNIMO

Enquanto o mundo maximiza frivolidades, Zélia cai no "samba minimalista" –assim define seu som "de pouca massa sonora". "Alameda dos Sonhos" é um exemplo: "A música só tem cuíca e caxixi".

Ela assina nove das 14 faixas do disco, algumas em dupla –Pedro Luís, Bia Paes Leme e Arlindo Cruz estão entre os parceiros. Também gravou Paulinho da Viola, Riachão e Dona Ivone Lara. Com a sambista de 93 anos, que "acorda cantando melodia", tomou Coca-Cola e comeu bolo de fubá.

Zélia canta há 34 anos e entrou no mapa nacional em 1995, após emplacar "Catedral" na trilha da novela "A Próxima Vítima". No começo da carreira, lançou sons sugeridos pela gravadora e que hoje lhe soam estranhos. "Tem muito teclado no meu primeiro disco. Me ressinto um pouco disso."

Agora toma as rédeas de seus projetos. Se errar, errou. Pelo menos fez o que gosta, diz. Críticas recebidas quando decidiu entrar no Mutantes têm a ver com esse mantra.

Ela conta que ligou para Rita Lee logo após ser convidada por Sérgio Dias para assumir os vocais da banda, em 2006. "Ela ficou um tempo em silêncio e depois disse: 'Você vai se divertir com os manos'."

Profecia cumprida. "Na boa, o que mais me senti foi privilegiada." Surge a comparação com Adam Lambert, que recentemente ocupou o posto de Freddie Mercury (1946-1991) no Queen. A postura dela e de Lambert, afirma a cantora, é reverencial, ponto. "Mas neguinho-fala-mal-ponto-com."

O importante é se reinventar, diz Zélia, que se formou há três anos em letras, após apresentar uma monografia sobre Hilda Hilst (1930-2004) numa faculdade particular do Rio. Lembra das palavras de outra poeta para justificar os versos de "Eu Mudei", sobre mudanças que aconteciam quando "ninguém estava olhando".

"Essa vida contém cenas explícitas de tédio/ Nos intervalos da emoção", escreveu Alice Ruiz. Num desses hiatos, a Zélia sambista apareceu. "Demorei, mas o mundo ainda não acabou."

ANTES DO MUNDO ACABAR
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