Folha de S. Paulo


Entre tragédia e comédia, elenco faz um 'milkshakespeare' em duas peças

No final da passagem de algumas cenas de "Macbeth", o ator Fábio Takeo perguntou a Ron Daniels pelo subtexto de Lennox, seu personagem. O diretor falou de bate-pronto, para os 14 atores: "Confiem no texto. Está tudo lá. Quase não precisa da gente".

A Folha acompanhou por dois dias, na Cidade das Artes, na Barra da Tijuca, no Rio, os últimos ensaios da tragédia e da quase comédia "Medida por Medida", peças do projeto Repertório Shakespeare, que Daniels e o ator Thiago Lacerda estreiam na semana que vem, em São Paulo.

É a segunda produção de ambos, depois de "Hamlet" há três anos. Daniels, 73, começou como ator no Brasil, dirigido por Augusto Boal e Zé Celso, e saiu do país em 1964 para ser encenador em Londres e depois Nova York.

Perdeu a conta das peças de Shakespeare que dirigiu, lembrando melhor das que faltam, como "Cymbeline". Já prepara um novo "Othello" em Washington (EUA). Vêm daí, desse meio século trabalhando com o autor, as instruções que ele passa ao elenco, como "pega a onda".

Daniels gosta da "organização musical do texto, mesmo em português", e diz não sentir falta do inglês original. Ele fez a tradução, com Marcos Daud, e descreve como o dramaturgo forma "ondas intelectuais e emocionais, listas de ideias que criam melodias interiores que nos levam".

O "Hamlet" bem-sucedido com Thiago, em 2012, estava se preparando para ir ao Shakespeare Globe, em Londres, quando o diretor o convenceu a ficar e fazer outra. Ele afirma que o ator "nasceu para fazer Macbeth, tem a musculatura emocional e intelectual, entende o texto".

Num intervalo do ensaio, Thiago diz que em Macbeth e Hamlet "a imaginação tem a mesma potência" e que, "como o Ron fala, Shakespeare fez uma peça só, em que ambição, inveja, amor, tudo se intersecciona". Do alto de seu 1,95 metros, agora com aparência que remete ao Robert de Niro de "Taxi Driver", diz que a diferença básica é que Macbeth "fala e faz, ele é ação".

"É um herói, um grande conquistador, e de repente revela um tumor, uma ambição que decompõe toda a estrutura civilizatória. O que sobra, quando rompe, é o animal, a violência." Anota que a peça "é absolutamente pertinente com nosso Estado hoje", com o Brasil, mas que sempre é assim com Shakespeare ("também seria pertinente daqui a 15 anos ou 150 anos atrás").

ENERGIA SEXUAL

Como Hamlet, Macbeth tem consciência do que está acontecendo e de que "vai dar merda, mas vem essa mulher e o pega na ambição". No elo com a Lady Macbeth de Giulia Gam "existe uma energia sexual, eles se amam e se conhecem, querem o trono".

Descrita por Daniels como uma reunião de "fragilidade com coragem emocional", Giulia, 48, vem compondo a sua Lady Macbeth com algumas indicações do original, como "a intimidade com o sobrenatural" e "o lado pagão". Também nessa direção, "a sexualidade forte" do casal.

Mas a personagem não tem os voos de consciência de Macbeth para ajudar nessa composição e, relata a atriz, "você tem que criar uma realidade sua para sustentar essa Lady" –além de se apegar à própria experiência com Shakespeare, ela que estreou no palco como Julieta, aos 16.

O último ensaio corrido de "Macbeth", na quinta (22), foi extenuante para os atores, e Daniels conta que a ideia de montar os dois espetáculos vem em parte daí: passar da "escuridão" da chamada peça escocesa, em que até crianças são chacinadas, para "a saída da escuridão" em "Medida por Medida", cujo ensaio final foi no dia seguinte.

É uma das chamadas peças-problemas de Shakespeare, entre drama e comédia. "Ela também mergulha, mas depois vira", diz o diretor.

Entre os presentes no corrido de "Medida", apareceu Fernanda Montenegro. A atriz de 86 anos foi festejada pelos colegas e os festejou. "Meu herói, parabéns pela coragem", falou para Thiago. "É uma poderosa", disse a Giulia.

O ensaio correu com mais facilidade, equilibrando cenas de profundo questionamento ético –com personagens como Ângelo, um juiz feito por Thiago– e outras escrachadamente cômicas –com, entre outros, a cafetina Bem-Passada, de Giulia.

Até que Marcos Suchara, o mais experiente do elenco em montagens de Shakespeare, esqueceu uma fala. Seguiu-se silêncio interminável, até o ator se render, "Esqueci". Fernanda, da cadeira, o reanimou, "É ensaio!". Como Lúcio, Suchara foi uma das âncoras de humor no dia, que acabou com sorrisos largos.

"Medida" é uma peça sem tanto protagonismo, segundo Daniels, mas a religiosa Isabella de Luisa Thiré e o Duque de Marco Antônio Pâmio têm maior presença e foram aprovados por Fernanda. "Sua avó ficaria orgulhosa", falou para Luisa, que é neta da atriz Tônia Carrero, 93.

Abriu-se depois uma roda em torno de Fernanda, que falou do "ofício" para o elenco, como a jovem atriz Stella de Paula, moradora da Rocinha, que faz uma bruxa em "Macbeth" e uma prostituta em "Medida" –e que sem chamar a atenção, olhando de lado, chorou.

O Projeto Shakespeare estreia com "Macbeth" no dia 5 e "Medida" no dia 6, iniciando temporada em dias alternados em São Paulo. Antes, a partir desta quinta (29), as peças fazem pré-estreias em Belo Horizonte, no Cine Theatro Brasil (31 3201-5211).

REPERTÓRIO SHAKESPEARE
QUANDO "Macbeth": qui. e sáb., às 21h; de 5/11 a 30/1/2016; "Medida por Medida": sex., às 21h, dom., às 18h. de 6/11 a 31/1/2016
ONDE Sesc Vila Mariana, r. Pelotas, 141, São Paulo, tel. (11) 5080-3000
QUANTO R$ 60 (no site sescsp.org.br e nas unidades do Sesc)
CLASSIFICAÇÃO 12 anos


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