Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Diretor acerta ao misturar registros para explicar o Chile

Poucos documentários conseguem condensar a história de um país com poesia e profundidade como "O Botão de Pérola", de Patricio Guzmán. Arte, geografia e política se fundem numa narrativa tecida com beleza e esmero.

Como em "Nostalgia da Luz", o cineasta parte da observação do cosmos feita pelos telescópios cravados no deserto do Atacama, no norte do país. Naquelas terras crestadas, ele conjugou a busca no solo por vestígios de desaparecidos com a procura por estrelas, varreduras no passado.

Agora, Guzmán trata da água. Ali no Chile, com 4.200 km de litoral, o oceano parece distante do cotidiano das pessoas. Nem sempre foi assim. A Patagônia chilena, lembra o diretor, já abrigou povos navegadores e pescadores destemidos que conheciam todas as quebradas da costa inóspita.

Divulgação
Créditos: DIvulgação Legenda: Cena do filme
Habitante da Patagônia chilena em "O Botão de Pérola"

Eles foram brutalmente exterminados com a chegada de colonos criadores de gado, no final do século 19. Algumas fotos resgatam seu cotidiano longínquo: os corpos pintados, os movimentos de dança. Aniquilados, costumes e línguas estão na memória de um punhadinho de gente, duas dezenas.

Naquele choque, um nativo foi levado para a Europa em troca de alguns botões. Seu nome ficou sendo Jemmy Button e ele simbolizou a derrocada das civilizações ancestrais daquele lugar.

Num salto no tempo, Guzmán recorda que só no breve governo de Salvador Allende (1970-1973) os poucos remanescentes daqueles grupos tiveram alguma voz. Depois, com a ditadura de Pinochet, a política de extermínio voltou para todos os opositores do regime, imposto pelos tanques e "financiado pelos EUA", reforça o cineasta.

É ele que costura os fatos, num texto preciso e contundente, mesclando a história do país com suas memórias pessoais de garoto: o ruído gostoso da chuva no telhado de zinco, o amigo que se afogou, o primeiro desaparecido que conheceu. O recurso narrativo, que dá unidade à fita e abre espaço para poesia e reflexões, já fora usado em "Nostalgia da Luz" (2010), o primeiro filme dessa trilogia sobre o Chile, que terá nos Andes seu último pouso.

"O Botão de Pérola" lembra que foi no sul chileno que a ditadura encarcerou os ministros do governo Allende. Eles ficaram presos na ilha Dawson, um episódio retratado com maestria por Miguel Littín em "Dawson Ilha 10", de 2009. Agora, Guzmán reúne os sobreviventes daquele campo de concentração.

Diretor de um dos melhores filmes políticos já feitos, a trilogia "A Batalha do Chile" (1975-1979), sobre o contexto da derrubada de Allende, ele detalha como o exército chileno fazia para jogar ao mar os corpos de centenas de assassinados pelo governo.

No mar, há outro botão. Como o que seduziu o indígena Button. E falando de água, o cineasta enfatiza a necessidade de resgate desses capítulos terríveis da história do país. "A impunidade é um assassinato duplo", alguém observa.

Um filmaço. Não só sobre a história do Chile, mas sobre a história de todos nós. Universal, portanto.

O BOTÃO DE PÉROLA (El botón de nácar)
DIREÇÃO Patricio Guzmán
PRODUÇÃO Chile/França/Espanha, 2015, 14 anos
mostra qua. (28), às 18h15 (Cinearte 1); qui. (29), às 19h30 (Matilha Cultural); sex. (30), às 19h (Cine Olido); seg. (2/11), às 21h45 (Espaço Itaú - Frei Caneca); ter. (3/11), às 18h20 (Cinesala)


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