Folha de S. Paulo


Documentário relembra luta livre de Ted Boy, Matador e Michel Serdan

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A batalha sangrenta entre dois ou mais brutamontes, que atendiam por nomes como La Múmia, Scaramouche e Cangaceiro, se dava na base do "engana que eu gosto".

Campeões de audiência na TV brasileira entre os anos 1960 e 1990, os torneios de telecatch –a luta livre– tinham pancadas tão autênticas quanto o loiro platinado que Bob Júnior, 44, usava nos cabelos. Ele era o Príncipe Dourado na era de ouro da modalidade.

"Nosso paquito", brinca Renato Dias, 60 –que combatia sob a alcunha O Romântico e hoje narra duelos– sobre o cabelo com mullets e a maquiagem que remetem à fase Ziggy Stardust de David Bowie.

Bob está no documentário "Monstros do Ringue", que estreia nesta quinta (22), na Mostra de Cinema de São Paulo.

Filho de lutador, estreou aos 8 na arena (encarnava o filhote do King Kong). Cresceu entre ídolos como o galã Ted Boy Marino (1939-2012) e Aquiles, o Matador –que ganhou o apelido por golpear fatalmente um adversário na cabeça, "mise-en-scène" que deu errado.

A trupe era sucesso nacional. Ia aos rincões do país em ônibus e Kombis pintados com seus nomes. Passava temporadas hospedada em bordéis.

No auge, o guerreiro Michel Serdan, que levou o programa "Gigantes do Ringue" para a Record, diz que recebeu um telegrama de Boni, então executivo da Globo: "Vocês bateram 'Rainha da Sucata' [novela de 1990]". À Folha, Boni nega a derrota na audiência. "Nunca mandei nada para ele."

Sucateado ficou o telecatch no fim dos anos 1990, de fora da TV aberta (com exceção de algumas incursões pela TV Gazeta). Bob faz "mea culpa" pela derrocada. "Ficou meio chato, repetitivo. Entrava lutador do mal, mexia com o público, e depois o bonzinho ganhava. A plateia perdeu interesse."

A fórmula do mocinho sempre ganhar começou a falhar com as novas gerações. É como tourada, diz Renato, que veste regata "stay strong, dance more, be happy" (continue forte, dance mais, seja feliz). "Só que a Espanha torce para o toureiro. Nós, para o touro."

Aquiles, o Matador, virou cantor gospel. Mister Argentina, taxista. Nino Mercury se aposentou como bancário.

AGARRE COMO DER

"Telecatch" vem da abreviação de "tele", de TV, com "catch as catch can" (agarre como der). Antes do declínio, o gênero agarrou a atenção do diretor Marc Dourdin ("Futebol de Várzea"), 36. Menino, ele assistia a homens e mulheres se digladiando nos anos 1990 (às vezes um contra o outro, como nos clássicos entre Bia Perversa vs. Black Star).

Este novo documentário de Dourdin traz imagens de arquivo memoráveis. Numa delas, Michel e Aquiles combatem dentro de uma jaula. Após ser nocauteado, o primeiro enxuga as lágrimas numa meia que arrancara do oponente.

Foi o segundo de três embates que tiveram em 1987. No primeiro, Michel acabou quebrando a perna do oponente com um pedaço de madeira. Na terceira batalha, triunfou.

A luta livre é assumidamente teatral, mas os sopapos são de verdade. Os adversários treinam para bater, apanhar (com técnicas de relaxamento muscular) e dar aqueles gritos ("uh!") de dor. Bob Júnior mostra à Folha o vídeo de uma batalha: sem o público perceber, ele se corta com gilete na testa para sangrar no ringue.

Os resultados são quase sempre combinados previamente. "Normalmente a empresa [patrocinadora] determina [o vencedor]", conta Michel em sua academia, na Mooca, em São Paulo –onde, antes de conversa com a Folha, Bino Rock e El Gringo se enfrentavam no ringue sob a "bênção" de um display de papelão da atriz Grazi Massafera numa "Playboy" antiga.

editoria de arte/Folhapress
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Hoje a luta livre encontrou um filão em eventos "nerd". Bob dá workshop para fãs de cosplay (quem se fantasia como um personagem de ficção). O "próximo Ted Boy Marino" está agora em seu tatame, diz e chama Gabriel Gonçalves, 19.

No ringue, ele vira Ace Punhos de Fogo, do desenho japonês "One Piece". Para colegas, lembra a cantora Maria Gadú. Diz ganhar R$ 250 lutando em eventos. Com essa "bolada", nem liga quando o zombam por não "dar porrada de verdade, como no UFC".

"A luta livre sempre foi brega. Igual ao Silvio Santos, ninguém assume que assiste", compara Michel, que não é fã do "realista" MMA. "Acho aquilo uma volta à barbárie."


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