Há 50 anos, os leitores da já então prestigiosa revista "The New Yorker" encontraram, na página 57 da edição de 25 de setembro de 1965, um relato que entraria para a história do jornalismo e da literatura.
"A cidade de Holcomb fica nas planícies do oeste do Kansas, lá onde cresce o trigo, uma área isolada que mesmo os demais habitantes do Kansas consideram distante", começava o texto.
Era o primeiro dos quatro capítulos sobre a história do assassinato de uma família inteira no Meio-Oeste dos EUA, que no começo do ano seguinte seria publicado no livro "A Sangue Frio" ("In Cold Blood", no original).
| Efe | ||
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| O escritor norte-americano Truman Capote |
A obra, assinada pelo jornalista Truman Capote, viria a ser reconhecida como referência no chamado romance de não ficção, em que fatos reais são narrados com técnicas romanescas.
Seis anos antes, Capote lera uma breve notícia sobre o assassinato dos Clutter na edição de 16 de novembro de 1959 no jornal "The New York Times" e resolveu se dedicar ao caso que se tornaria um tema no país, com cada lance acompanhado pela imprensa e aguardado pelos leitores.
Cinquenta anos depois do marco da publicação na "New Yorker", a obra de Capote –morto em 1984 aos 59 anos– permanece aclamada, leitura obrigatória em faculdades de comunicação e base para outras obras (leia abaixo).
A precisão factual do relato, contudo, foi posta à prova mais de uma vez desde então. No meio jornalístico americano, o estilo de apuração de Capote hoje é criticado.
O autor, que dizia não gravar ou anotar conversas para não intimidar o interlocutor, confiava em sua memória para recontar cenas e diálogos.
Capote chegou à cidade do crime, Holcomb, um mês depois do episódio, no final de 1959. Reconstituiu o assassinato e, mais tarde, ficaria próximo dos assassinos, Perry Smith e Dick Hikcock, executados em 1965.
LIBERDADE
Ao longo do tempo, críticos apontaram evidências de que ele tratou os fatos com uma liberdade intolerável segundo padrões jornalísticos.
O professor e escritor Ben Yagoda, autor de um dos mais respeitados livros sobre a "New Yorker", apurou que William Shawn, editor da revista durante 30 anos, depois se arrependeu de ter publicado "A Sangue Frio".
A confissão foi feita pelo editor-adjunto de Shawn à época a Yagoda em "About Town, The New Yorker and the World It Made" (2001).
O professor descobriu, por exemplo, que o responsável pela checagem de fatos da revista era amigo de Capote e muitos de seus questionamentos ao texto original nunca foram esclarecidos.
"Com certeza, Shawn não sabia de todos os problemas que apareceriam depois. Capote era tão bom escritor quanto relações públicas. Ele sabia vender-se a si mesmo e Shawn sucumbiu, contra o seu melhor julgamento", afirmou Yagoda à Folha.
Em entrevista em 1966 ao então editor da "Paris Review" George Plimpton, Capote disse que "claro que um uma narrativa jornalística requer imaginação!". Técnicas literárias aplicada ao jornalismo, argumentava, davam sabor e estilo à reportagem.
VOZ FINA
Capote era uma figura excêntrica. Tinha a voz fina e seguia a própria moda. Não era jeitoso à primeira vista, mas, com o tempo, cativava quem ele queria cativar e ouvia as mais íntimas confissões.
Para a apuração inicial de "A Sangue Frio", teve a ajuda da escritora Harper Lee, 89, amiga da infância no Alabama que viajou com ele a Holcomb. Mais jeitosa que o amigo gay, ela desarmou moradores e conseguiu entrevistas que ele dificilmente conseguiria na cidade interiorana.
Ao publicar "A Sangue Frio", Capote não deu o crédito à amiga à altura.
O escritor Greg Neri lançará, em março de 2016, "Tru & Nelle" (Nelle é o primeiro nome de Harper Lee), ficção infantojuvenil baseada na relação dos dois. Para ele, o sucesso de "O Sol É para Todos", pelo qual Harper venceu o prêmio Pulitzer, em 1961, tornou Capote "invejoso e mesquinho".
"Truman sempre foi o mais esperto. Ele era o cérebro e ela, o vigor", observa Neri. "Na juventude, Lee era ingênua e tinha um talento não burilado. Mas, mais tarde, o superou com um único livro."
A falta de reconhecimento à ajuda da amiga e o mergulho nas drogas de Capote seriam fatais para a amizade.
A revista "The New Yorker" –que não respondeu ao pedido de entrevista– não dá sinais de arrependimento quanto à publicação do relato há 50 anos.
"As violações à não ficção estão a serviço de organizar uma realidade caótica em uma narrativa emocionalmente envolvente e cheia de suspense, o que jornalistas mais responsáveis certamente devem reconhecer", escreveu Patrick Radden Keefe num artigo na revista em 2013.
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Quando Capote morreu, em 1984, o editor William Shawn disse que ele era um repórter "brilhante, às vezes surpreendente. E tinha um dom lírico também". Para o editor, "o que parecia importar mais que tudo na vida, para Capote, eram as palavras e as frases".
Ao comemorar 85 anos de revista, em 2010, a "New Yorker" republicou um dos trechos de "A Sangue Frio". Mantém o primeiro deles disponível em seu site, mesmo a não-assinantes, exceção concedida apenas a alguns troféus.
E o faz sem alterar a "nota do editor": "Todas as citações deste artigo foram tomadas de registros oficiais ou de conversas transcritas na íntegra entre o autor e os envolvidos".
ALÉM DO ROMANCE - Obras geradas a partir do romance de Capote
FILMES
'A Sangue Frio' (1967)
Dirigida por Richard Brooks ('Gata em Teto de Zinco Quente'), a primeira versão cinematográfica do livro narra o assalto frustrado e a morte da família Clutter. Os assassinos Perry Smith e Dick Hickock são interpretados por Robert Blake e Scott Wilson, respectivamente
'Capote' (2005)
No longa de Bennett Miller, Capote é retratado como um homem que não mede limites para conseguir histórias para seu livro. Alguém que oscila entre a compaixão por Perry e a necessidade de botar fim em seu projeto. Philip Seymour Hoffman ganhou o Oscar de Melhor ator em 2006 pela interpretação de Capote
'Confidencial' (2006)
A relação controversa entre Capote (Toby Jones) e os assassinos é a tônica do filme dirigido por Douglas McGrath. Sigourney Weaver e Gwyneth Paltrow completam o elenco
Veja o trailer de "Confidencial"
TV
'A Sangue Frio'
Em 1996, a CBS exibiu a minissérie em dois capítulos dirigida por Jonathan Kaplan
'In Cold Blood'
Em abril deste ano, a Weinstein Company adquiriu os direitos do livro para a TV. A adaptação não tem data prevista, mas alguns nomes já foram confirmados: Gary Oldman será um dos produtores-executivos, e o roteiro ficará por conta de Kevin Hood
HQ
'Capote in Kansas' (2006)
Capote, homem excêntrico cujos modos soam agressivos aos conservadores, contra uma cidade inteira. Esse é o conflito desta "graphic novel". Ande Parks e Chris Samnee recriam por meio da ficção o período de pesquisa de Capote na Holcomb do fim dos anos 1950