Folha de S. Paulo


Coletânea de contos abraça 60 anos da trajetória de Liev Tolstói

Quem leu nos últimos anos algum livro do russo Liev Tolstói (1828-1910) provavelmente já topou com o nome de Rubens Figueiredo. O escritor e professor aposentado de 59 anos traduziu recentemente três clássicos do gigante da literatura russa –"Anna Kariênina", "Ressureição" e "Guerra e Paz".

Os romances, traduzidos diretamente do russo pela primeira vez no Brasil, foram publicados pela Cosac Naify.

Tradutor e editora lançam agora outra investida portentosa na obra de Tolstói, seus "Contos Completos". Uma caixa com três volumes em capa dura e mais de 2.000 páginas reúne por volta de 260 histórias, escritas entre 1850 e 1910.

Figueiredo excluiu apenas textos inacabados e relatos mais longos ("A Morte de Ivan Ilitch", "A Felicidade Conjugal", "Padre Sérgio"), mais conceituados como novelas.

Efe
Liev Tolstói
O escritor russo Liev Tolstói

Diante de material tão vasto, o próprio Figueiredo tem dificuldade em afirmar quantos são inéditos em português –professores de literatura russa consultados pela Folha avaliam que pelo menos um quarto deles nunca saiu aqui.

De toda forma, é a primeira edição brasileira com todos os contos de Tolstói vertidos diretamente do russo. A seleção completa dessa produção é rara em qualquer parte do mundo, avaliam os especialistas.

"É um lançamento fantástico", diz Elena Vássina, professora de letras russa na USP. "Muitos contos já foram publicados no Brasil, mas em tradução indireta, a partir de versões em inglês e francês, e de qualidade muito ruim."

A empreitada custou ao tradutor três anos de trabalho, mais ou menos o tempo que passou mergulhado nas 2.500 páginas de "Guerra e Paz".

"Observo que as pessoas não têm uma noção razoável de que Tolstói foi um escritor de contos. Ele escreveu contos a vida inteira. A dimensão dos romances ofuscou essa faceta", comenta Figueiredo.

Os textos são agrupados em ordem cronológica. Por eles pode-se traçar um retrato de Tolstói por quase 60 anos.

Os contos do primeiro volume são os mais longos da caixa. Do começo dos anos 1850, como "A Incursão" e "Memórias de um Marcador de Pontos de Bilhar", espelham passagens da juventude do autor –a participação na Guerra da Crimeia (1853""1856), o vício em jogos, a vida libertina.

Tolstói tinha menos de 30 anos quando os escreveu, mas já é nítida a marca de seu gênio na sobriedade das narrativas, na agudez e sensibilidade com que observa o comportamento humano.

O segundo volume traz os "Contos da Nova Cartilha" e os quatro "Livros Russos de Leitura", frutos do trabalho pedagógico de Tolstói. Descendente de aristocratas, ele nunca se sentiu confortável com sua condição social e criou em Iásnaia Poliana, propriedade rural onde nasceu, uma escola para alfabetizar crianças camponesas.

Os textos curtíssimos dessa seção (espécies de fábulas morais) foram escritos por Tolstói com ou a partir de histórias contadas pelos alunos.

Os dois primeiros "Livros Russos..." foram publicados há poucos anos pela Ateliê Editorial, mas os últimos permaneciam inéditos no Brasil.

Eduardo Anizelli/Folhapress
Camponesas russas em fotografia produzida por Serguei Mikháilovitch Prokúdin-Gorskii (1863-1944), um dos pioneiros da fotografia em cores Cred: Library of Congress, Prints & Photographs Division, Prokudin-Gorskii Collection ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Camponesas russas em fotografia produzida por Serguei Mikháilovitch Prokúdin-Gorskii

O terceiro volume abrange contos de 1885 a 1910, ano da morte do escritor. Após concluir "Anna Kariênina" em 1877, ele caiu em uma profunda crise existencial e voltou-se para a fé, professando um cristianismo particular que negava a autoridade dos governos e igrejas estabelecidas, defendia uma vida ascética e rejeitava os bens materiais.

"Nas últimas décadas de vida, ele pregava um amor desinteressado, universal. Ele sentia mais forte a missão de retratar o povo mais pobre", diz Aurora Bernardini, professora de russo da USP.

Bruno Gomide, também professor de literatura russa da USP, destaca, entre os contos dessa fase, "Kholstomier" (1885), cujo narrador é um cavalo. "Há muita experimentação nesta história", diz.

Figueiredo defende que nos contos, com suas formas compactas, ficam ainda mais evidentes as experimentações literárias de Tolstói. "Nas pequenas histórias, podemos ver o pensamento dele incidindo em várias direções. Você passa de um texto para outro e pensa: como ele pode ter escrito tanta coisa diferente?"

A massa pobre e excluída russa forma os personagens de vários dos contos. O amplo painel social encontra um paralelo perfeito nas belas fotografias de Sergei Mikhailovich Prokudin-Gorskii (1863-1944) que ilustram os "Contos Completos". Pioneiro da fotografia em cores, ele registrou a diversidade étnica e geográfica do Império Russo.

Duas temáticas são também muito presentes nas histórias: a predominância do ambiente rural, como alternativa à vida urbana capitalista, e o questionamento das pretensões de superioridade de grupos sociais e países.

"O que movia Tolstói era o ânimo questionador. Ele parte de um esforço para entender os grandes processos históricos que estavam em curso em seu país, em sua aldeia", diz o tradutor.

"Por isso ele tem essa facilidade de relacionar os problemas de um camponês com a política de Napoleão. Isso deu à obra dele um alcance histórico tão largo que permite que ainda hoje a gente a leia como algo que importa."


Endereço da página: