Folha de S. Paulo


Painéis de Candido Portinari voltam à sede da ONU com festa enxuta

Desinteresse de potenciais patrocinadores, portas fechadas pelo governo e uma tragédia pessoal quase inviabilizaram a reinauguração dos painéis "Guerra e Paz", de Candido Portinari, na sede da ONU (Nova York), nesta terça (8).

Uma versão enxuta da cerimônia sobreviveu com 7% do orçamento inicial previsto de R$ 6,5 milhões, autorizados para captação via Lei Rouanet.

Além desse montante, o governo federal apoiou a cerimônia com R$ 800 mil da Funarte.

Stefan Hess/Divulgação
Restauro de 'Guerra e Paz', em 2011, no palácio Capanema, no Rio
Restauro de 'Guerra e Paz', em 2011, no palácio Capanema, no Rio

Além de uma mensagem gravada pelo papa Francisco, um filme dirigido pela cineasta paulistana Bia Lessa será exibido na Assembleia Geral, em cuja entrada os painéis ficam expostos permanentemente desde 1957, doados pelo Brasil às Nações Unidas.

Estrategicamente, o painel "Guerra" é visto por quem chega ao salão. A outra metade "Paz" aparece na saída.

Há cinco anos, a obra monumental de duas toneladas e 14 metros de altura, que contrapõe cenas de horror da guerra a imagens de fraternidade e harmonia com a natureza, foi levada ao Brasil para restauração e exibição, pela segunda vez, ao público brasileiro, com passagens por Rio, São Paulo e Belo Horizonte, além de Paris.

A volta à ONU antecede a Assembleia Geral, no final do mês, que terá a presença de quase 200 chefes de Estado, além do papa. Fundador e diretor-geral do Projeto Portinari, João Candido Portinari, 76, filho único do pintor paulista, disse à Folha que a intenção era fazer uma cerimônia que evidenciasse a consonância da mensagem de "Guerra e Paz" com a da missão da ONU.

ESQUERDA

A busca por esse reconhecimento, porém, é penosa, desde a doação dos murais, em 1956. Eram tempos de Guerra Fria, e o visto de entrada nos Estados Unidos havia sido negado um ano antes a Portinari, devido à sua ligação com movimentos de esquerda, interpreta João.

O pintor recebera outra homenagem pelo painel "Tiradentes" e, impedido de entrar no país, escrevera um telegrama para que fosse lido na cerimônia. Seis anos depois, em 1962, o artista morreria, aos 59, no Rio, em decorrência da inalação de substâncias tóxicas das tintas com que pintava.

Nunca pôde ver os painéis instalados no destino para os quais foram criados. O telegrama é narrado por Fernanda Montenegro no filme de Bia Lessa, que será exibido na reinauguração. Também trará leituras dos cantores Milton Nascimento e Maria Bethânia.

Acervo Projeto Portinari
Inauguração dos painéis, na ONU, em 1957
Inauguração dos painéis, na ONU, em 1957

O músico declamará "Os Homens Ocos", poema de T.S. Eliot: "Nós somos os homens ocos, os homens empalhados, uns nos outros amparados. O elmo cheio de nada. Ai de nós!".

A cantora lerá, entre outras, uma passagem de "Fausto", de Goethe: "Que sou eu se não posso alcançar, afinal, a coroa com louros da nossa humanidade, a que todos almejam com tanta ansiedade?".

AGENDA POSITIVA

A reinauguração precisou ser adiada três vezes, por falta de verbas. "Todas as pessoas que procurei no governo brasileiro e na iniciativa privada estavam tão envolvidas com a agenda de crise que não tinham espaço para uma agenda positiva, de interesse nacional", lamenta João Candido. "Não tinham espaço nem para me ouvir."

O fundador do projeto se viu ainda sugado por uma tragédia pessoal, em 2013, quando perdeu sua filha, Maria, de 16 anos. "Quando comecei o Projeto Guerra e Paz, todos os dias, via a mãe [retratada na tela] com o filho morto no colo. Nunca imaginei que, um dia, eu veria a minha própria filha assim."

Em homenagem ao pai e a Maria, que sempre se envolveu no projeto sobre o avô, João Candido seguiu adiante. O "custo foi alto demais", diz, para que deixasse a mensagem de paz se perder.


Endereço da página:

Links no texto: