Folha de S. Paulo


'Acho que não escreverei mais poesia', conta Ferreira Gullar

O poeta Ferreira Gullar folheia um livro de 664 páginas em busca dos últimos versos que escreveu. Encontra após poucos segundos o poema "Abduzido", incluído na última edição de "Toda Poesia", recém-publicada pela José Olympio. Ele lê em tom alto e firme, escondendo bem na imponência da voz os 85 anos que completa na próxima quinta-feira (10).

"Busco/ tateando/ no escuro/ o interruptor da lâmpada de cabeceira/ e/ ao acendê-la/ deparo-me/ comigo/ em frente a mim/ como se fosse outro:/ estarei noutro?/ [e de pijama/ o mesmo pijama verde-grama/ com que durmo em minha cama?", ele faz uma breve pausa e continua.

A leitura remete a novembro de 2009, quando acordou meio zonzo em um hotel na capital paulista e viu a própria imagem refletida no espelho. Teve a impressão de que era outro e fez o poema.

Zô Guimarães/Folhapress
RIO DE JANEIRO, RJ, BRASIL, 28-08-2015, 21h; Retrato do escritor Ferreira Gullar que lança livro de ensaio inédito e relança sua obra completa. Foto em sua em Copacabana, Rio de Janeiro. Foto: Zo Guimaraes/Folhapress/ ILUSTRADA (zo com acento circunflexo no o)**EXCLUSIVO FOLHA**
O escritor Ferreira Gullar (foto) lança livro de ensaio inédito e relança sua obra completa

Para o autor maranhense, que vive no Rio de Janeiro desde 1951 e é colunista da Folha desde 2005, a poesia nasce como se ele "de repente desconhecesse o mundo, porque o mundo não tem explicação". A inspiração surge do que Gullar chama de espanto. Espanto que, há quase seis anos, não lhe vem mais.

"Não estou dizendo que não quero escrever", ele explica. "Mas é o espanto diante do inusitado que me move. E isso não posso buscar. Se tudo na vida acaba, por que minha capacidade de escrever não poderia terminar?"

O escritor acaba de lançar seu primeiro livro pela editora Autêntica. Em "Autobiografia Poética e Outros Textos", revisita, em prosa, sua trajetória literária. Pouco antes de receber a Folha, Gullar notou que, desta vez, escreveu para reviver o passado. Ele ri quando conta a recente descoberta, como se estivesse, mais uma vez, revivendo. "É uma certa nostalgia, agora que não escrevo mais poemas."

POEMA ILEGÍVEL

Gullar lembra da ligação que recebeu do artista Hélio Oiticica, após publicar no jornal seu projeto do "poema enterrado". Para chegar até ele, o espectador precisaria descer uma escada e entrar em um porão, onde encontraria um cubo vermelho, em cima de um cubo verde menor, que estaria em cima de um cubo branco ainda menor, no qual se leria "rejuvenesça".

Ao telefone, Oiticica o incentivava: "Meu pai quer construir uma caixa d'água em casa, mas vou dizer para que construa o poema em vez dela". O poeta ri mais uma vez da lembrança, com pouco pesar pelo "poema enterrado", que virou inundado. "Choveu três dias seguidos. Na inauguração, os cubos flutuavam. Virou caixa d'água mesmo."

Após a experiência, Gullar não retornou mais à casa dos Oiticica e, pouco tempo depois, afastou-se também do grupo neoconcreto, movimento que ajudou a criar, do qual faziam parte artistas como Lygia Clark e Amilcar de Castro. Em "Autobiografia Poética", ele conta que entrou em crise e começou a questionar o rumo que imprimira à poesia: "Era como se aquele caminho [dos poemas-objeto] tivesse esgotado".

Esta não foi a única vez que o poeta chegou ao limite de sua poesia. Quando começou a escrever os poemas que integram "A Luta Corporal", Gullar queria uma linguagem que nascesse junto com a poesia, pois tinha a sensação de que estava utilizando uma forma velha para expressar uma experiência nova. "A linguagem devia nascer junto com o poema, não podia antecedê-lo. O que é um absurdo", ele diz, sessenta anos depois: "Pois a linguagem é anterior".

As experiências chegaram a tal ponto de subversão que Gullar destruiu a língua por completo: em "Roçzeiral", construiu um poema praticamente ilegível, que começava assim: "Au sôflu i luz ta pom-/ pa inova'/ orbita". O passo foi tão grande que o impediu de seguir adiante e, também, de voltar atrás. O autor decidiu que deixaria de escrever e até produziu um poema para a despedida que não se concretizou: "finda o meu/ sol/ pueril/ o ilícito/ sol/ da lepra acesa da pele".

SEM ESPANTO

"Naquela época eu tinha vinte e poucos anos. A poesia era minha vida", diz Gullar. "Hoje tenho a impressão de que não vou escrever mais, pois só escrevo com espanto."

Houve uma época em que o poeta escreveu sem. Quando fez os primeiros poemas de cordel, no início dos anos 60, ele diz que a preocupação política se sobrepunha à poética.

"Cabra Marcado para Morrer", por exemplo, nasceu de um pedido de Oduvaldo Vianna Filho, que dirigia o Centro Popular de Cultura da UNE. "Era uma encomenda com um objetivo político. E não era o caminho certo", pondera Gullar, que lançou após esse fase sua obra mais conhecida, "Poema Sujo".

Hoje Gullar se dedica a um tipo de colagem que, "segundos os entendidos, não existe na história". Ele a descobriu por acaso, ao cortar um papel e notar que seu avesso era de outra cor.

O poeta então se levanta da mesa de madeira onde esteve sentado durante a última hora e se volta para uma parede da casa, repleta de quadros. "Olha esse aqui: a parte detrás do azul era amarela. Eu corto o papel e depois puxo [deixando à vista tanto a frente como o verso, que forma um relevo]", explica. "Como não escrevo mais poesia, vou inventando coisas."

"Não estou dizendo que não quero escrever, mas que nunca mais escrevi", ele esclarece. "Alguns poetas não tinham mais espanto e continuaram para não jogar a toalha. Aí fica pobre, não tem a beleza reveladora da poesia."

Gullar comenta que a cada dia que passa entende menos do mundo. "Vivemos num planetinha desse tamanho, num universo com bilhões de galáxias, que tem bilhões de estrelas", diz. "É um troço inexplicável e, porque não tem explicação, é tão fantástico", conclui o poeta, que acredita que a vida é fator do acaso, com um campo imenso de probabilidades. Assim como a sua poesia.

AUTOBIOGRAFIA POÉTICA
AUTOR Ferreira Gullar
EDITORA Autêntica
QUANTO R$ 44,90 (160 págs.)

TODA POESIA
EDITORA José Olympio
QUANTO R$ 70 (664 págs.)


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