Folha de S. Paulo


Bons atores pesam mais do que sotaque, afirma José Padilha sobre 'Narcos'

Produtor-executivo da série "Narcos", José Padilha diz à Folha que a verossimilhança "não é tudo" na arte. "São pessoas fingindo ser quem não são", diz o diretor, que disse preferir trabalhar com grandes atores a preservar o sotaque de determinada região.

Na última semana, críticas à pronúncia do espanhol do ator Wagner Moura, que interpreta o narcotraficante colombiano Pablo Escobar no seriado. Ele não falava o idioma antes de ser escalado para o papel —aprendeu matriculando-se em um curso em Medellín, cidade do chefão do tráfico, na Colômbia.

Leia, abaixo, a resposta de Padilha ao jornal.

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Folha - O senhor acredita que os traços de sotaque na interpretação de um papel em língua estrangeira (como no caso do Pablo) são um aspecto importante da atuação?

José Padilha - Peter Sellers tinha sotaque inglês em alguns filmes em quê fez personagens americanos, e isto foi ignorado porque as pessoas queriam ver o Peter Sellers. Davam tanto valor aos outros aspectos da sua atuação que consideravam as questões relativas ao seu sotaque irrelevantes. O mesmo vale para Javier Bardem. A questão passa a ser: queremos ver a atuação de determinado ator em determinado papel a despeito de possíveis problemas de sotaque? Eu queria ver o Wagner fazendo o Pablo. E a crítica internacional em peso concordou! Está super elogiando a atuação dele.

*No elenco, há atores hispânicos de diversas nacionalidades e, claro, uma variedade de sotaques. Houve uma padronização da fala para o acento de Medellín? Isso foi trabalhado na preparação do elenco?

Visto de fora, padronizar o sotaque parece fácil. Mas pensando um pouco, fica claro que não é. Por exemplo: padronizar pelo acento de Medellín não faz sentido dado que nem todos os personagens são de Medellín! Cucaracha era Chileno, Javier Peña, mexicano. Outros muitos eram de Bogotá, de Cartagena, de Cali. E outros tinham origem indefinida. A verdadeira história de Pablo tinha gente de todo o mundo. Como usar um sotaque só? Deveríamos ter atores de cada cidade para cada personagem desta cidade? Que impacto isto teria no elenco?

O que fizemos foi buscar um espanhol "neutro" dentro da diversidade do elenco que tínhamos. Mas para mim, esta questão do sotaque era menos importante do que poder trabalhar com grandes atores de diversos países da América Latina em um único produto audiovisual. É a primeira vez que isto acontece. Além disso, a Netflix acessa todo o mundo ao mesmo tempo. O mercado potencial é muito mais amplo do que a Colômbia. Onde, aliás, sotaques à parte, estamos indo super bem. Por que será?

Algum palpite sobre a razão dos comentários sobre o sotaque do Wagner Moura?

Fiz uma entrevista na PBS e alguns colombianos ligaram para fazer perguntas e sequer mencionaram o sotaque. Entenderam o espírito da coisa. Apenas uma ouvinte reclamou dos "sotaques" diversos, mas disse que se acostumou depois de algum tempo e entendeu que fizemos uma opção. Adorou a série...

Sobre o motivo dos comentários: entendo que alguém que fale espanhol fluente sinta alguma estranheza por algum tempo. Mas depois fica claro que foi uma escolha e pelo que tenho visto, super acertada. O espectador entende a opção e entra na brincadeira. Afinal, o audiovisual têm uma dimensão lúdica por definição. São pessoas fingindo ser quem não são. A verossimilhança não é tudo na arte. Por exemplo: no Cidade de Deus, todas as gírias estão fora de época. Isso é um problema? Não, foi uma escolha acertada do diretor —liberou os atores para atuar melhor. Muitos filmes de Fellini são dublados e têm problema de "sinc" [sincronização]. E daí? São geniais e esta questão pouco importa.

Pablo Escobar é um personagem profundamente presente no imaginário colombiano. Chegou, em algum momento, a considerar escalar um ator daquele país para o papel?

Andrés Parra, grande ator colombiano a quem conheci, já fez o papel. Por que repetir?


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