Folha de S. Paulo


Claro que meu espanhol não é igual ao de um nativo, diz Wagner Moura sobre 'Narcos'

A discussão da última semana habla español. Desde que a série "Narcos" estreou na Netflix, em 28 de agosto, a interpretação de Wagner Moura de Pablo Escobar, o famoso traficante colombiano, acabou no meio de fogo cruzado: elogios versus críticas ao sotaque do brasileiro, que apertou a tecla SAP para atuar num idioma estrangeiro.

Sem conhecimento prévio em espanhol, ele se mudou para Medellín, terra do personagem, meses antes das gravações para aprender o idioma.

Sua atuação foi elogiada nos Estados Unidos –"digna de prêmios", para o jornal "The New York Times", e "distante dos clichês" sobre o chefão do tráfico, na revista "The Hollywood Reporter".

Narcos divide críticas: confira avaliações de quem gostou e de quem não gostou da série
Mas houve quem dissesse que a pouca naturalidade do ator ao dialogar em espanhol pesou. Na Colômbia, a revista "Arcadia" classificou a série de "decepção", um "palimpsesto linguístico" do continente.

Procurado, Moura afirmou não se sentir à vontade em comentar algo que, para ele, não precisa ser rebatido. Disse entender que seu domínio do espanhol não equivale ao de um nativo e pediu que sua fala não fosse editada pelo jornal.

Leia, abaixo, o depoimento de Wagner Moura

Desculpe, não há muito o que falar. Acho que não cabe ficar me justificando de críticas. O trabalho está aí, tem gente que gosta e gente que não gosta, assim é que funciona esse negócio.

"Narcos" tem recebido críticas consagradoras mundo afora e não creio também que tenha que agradecê-las ou achar que estão todas certas. Posso dizer o seguinte: eu gosto muito da série e tenho muito orgulho do trabalho que fiz. Em "Narcos", a maioria dos personagens colombianos é interpretada por atores que falam com outros sotaques. Luiz Gusmán é porto-riquenho, Paulina Garcia é chilena, Paulina Gaitán é mexicana, Alberto Ammann é argentino...

Claro que meu espanhol não é igual ao espanhol falado por um paisa [alguém da região] de Medellín. Tampouco é tão bom quanto o de qualquer um que fala essa língua desde que nasceu. Te garanto, no entanto, que fiz o melhor que pude.

Veja bem: Benicio del Toro, por exemplo, fez um Pablo Escobar extraordinário falando inglês no filme "Paradise Lost". E Pablo nunca falou inglês na vida. "Narcos" é uma série feita para o mundo inteiro, não só para a Colômbia. Já imaginávamos, claro, que ia haver alguma polêmica lá, pelo simples fato de eu ser brasileiro e de Escobar ser um personagem fundamental nesse país.

Apesar disso, foi emocionante a acolhida que tive por parte de todos os colombianos que trabalharam na série. Acho que eles respeitaram meu comprometimento com o personagem e com a história deles. E, sinceramente, isso para mim já valeu. O único espanhol que eu sei é o que aprendi em Medellin. Veja: quando fiz JK [em minissérie da Globo sobre o presidente, exibida em 2006], tentei pincelar o sotaque mineiro sem nunca forçar. Também não era perfeito como o de alguém que nasceu em Belo Horizonte.

O mesmo com o cearense de "Praia do Futuro", com o paulista de Carandiru, com o pernambucano de "Deus é Brasileiro" ou o carioca de "Paraíso Tropical". Não foi diferente com o paisa de "Narcos". Claro que um ator tem que tentar chegar o mais próximo possível do personagem em todos os aspectos humanos, inclusive, se for o caso, da prosódia. Mas eu acho, sinceramente, que há coisas bem mais importantes que o sotaque.

O RETORNO DE ESCOBAR

Germán Yances se desarmou aos poucos diante de "Narcos". "Minha primeira reação, como colombiano, foi de recusa", diz o ex-colunista de TV dos jornais "El Tiempo" e "El Espectador".

Ainda é forte no imaginário da Colômbia "El Patrón del Mal" (2012), seriado local, também exibido pela Netflix no Brasil, sobre Pablo Escobar. Nele, o ator Andrés Parra "reinventou a imagem" do traficante, segundo Yances. Veja o trailer d produção, abaixo:

El Patrón del Mal

O crítico diz que superou a "barreira linguística" do brasileiro Wagner Moura para Escobar no segundo episódio.

"É preciso entender que a série é internacional. A história é bem contada. Se alguém a vê em inglês ou na Itália, o sotaque não é um problema."

No Brasil, o público estranhou a pronúncia do ator, mais lenta e impostada que a dos colegas –o elenco reúne colombianos, chilenos e mexicanos, entre outros.

No site da revista "Época", uma resenha (elogiosa, diga-se) considerou a questão linguística um "tropeço" de "Narcos". Nas redes, o Escobar de Moura virou meme.

O site satírico "Piauí Herald" brincou que a dublagem para os EUA seria feita pelo treinador Joel Santana –cuja pouca intimidade com o inglês é famosa. O também jocoso "Sensacionalista" noticiou: 90% dos brasileiros que criticam Moura pedem "Cueca-Cuela" em viagens.

À Folha, o diretor José Padilha, produtor-executivo da série, disse que reunir numa produção grandes atores da América Latina era mais importante que o sotaque deles (leia aqui a entrevista na íntegra)

"A questão passa a ser: queremos ver a atuação de determinado ator em determinado papel? Eu queria ver o Wagner fazendo o Pablo."

Narcos

Outros brasileiros, como Alice Braga e Rodrigo Santoro, já desbravaram idiomas em produções estrangeiras –não como protagonistas, e portanto com menos alarde.

Padilha lembra outros casos, como Peter Sellers, que mesmo tendo pronúncia britânica viveu tipos americanos, e o espanhol Javier Bardem, que fez um brasileiro em "Comer, Rezar, Amar" (2010).

"A verdadeira história de Pablo tinha gente de todo o mundo. Como usar um sotaque só? Deveríamos ter atores de cada cidade para cada personagem dessa cidade?"

Consultora de italiano de novelas como "O Rei do Gado" e "Esperança" (Globo), a professora da USP Maria Cecilia Casini diz que, na ficção em língua estrangeira, eventuais ruídos de pronúncia são "compreensíveis e sem solução".

"A arte é uma convenção. É um pacto ficcional entre produtores, atores e público. A gente tem que aceitar essa condição", comenta. "Não se trata de ser tão purista."

Para Fernando Coimbra, diretor de "O Lobo Atrás da Porta" e de dois episódios de "Narcos", Wagner foi uma aposta ousada da Netflix.

"E ele foi corajoso de topar. Não tinha muito tempo para aprender espanhol e pôs a cara a tapa como poucos fariam." O cineasta destaca o caráter internacional da série –latino-americana, diz, "no maior sentido possível".

A obra, na verdade, é bilíngue. Narrada do ponto de vista de Steve Murphy (Boyd Holbrook), agente antidrogas americano na caça a Escobar, "Narcos" tem feito o público dos EUA superar a rejeição a um produto legendado, segundo o "Washington Post".

O jornal americano, por sinal, avaliou: "Moura está tão seguro no papel que você nunca diria que falar em espanhol foi um desafio para ele".

A série é a segunda em espanhol da Netflix, que pôs no radar o mercado latino-americano. São 5 milhões de assinantes, disse, em outubro de 2014, a empresa, que confirmou nova temporada para 2016.


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