Folha de S. Paulo


Álbum de Miley Cyrus é fruto de parceria 'espiritual' com mentor do Flaming Lips

Miley Cyrus conquistou sua liberdade pessoal e artística completa depois de quase uma década de fama. Foi essa liberdade que lhe permitiu anunciar no MTV Video Music Awards, no domingo, que depois de "Bangerz", seu grande álbum pop de 2013 que virou álbum de platina, ela está lançando 23 canções novas que agora estão online, por streaming gratuito.

"Posso me dar a esse luxo", disse Miley, 22 anos, falando no estúdio que tem em sua casa, uma semana antes do show, no qual ela atuou como apresentadora, brincando com a fama que tem de usar figurinos provocantes, falar livremente e consumir drogas. Miley aproveitou plenamente a plataforma comercial proporcionada por essa noite para estrear uma versão diferente dela própria, decididamente não comercial. "Posso fazer exatamente o que quero e criar a música que quero."

O resultado é "Miley Cyrus & Her Dead Petz", em que a cantora novamente reformula seu papel cultural, ampliando a narrativa de libertação de uma pop-star vista em "Bangerz" e ansiosa para mostrar que algo que pareceu ser um éthos performático, pós-Disney, do tipo vale-tudo, é na realidade mais que uma estratégia para o varejo -é sua estética e seu estilo de vida próprios. E, embora esteja trabalhando fora de seu contrato com gravadora, Miley acredita que, dada a amplitude de sua influência, fãs vão aderir em número suficiente para que este investimento em sua felicidade pessoal valha a pena.

"Yeah, eu queimo fumo /yeah, amo a paz", Miley berrou durante a final não anunciada do VMA, uma apresentação de "Dooo It!", a estridente canção que abre o álbum, cheia de palavras que foram apagadas na TV. A canção foi co-escrita com Wayne Coyne, que produziu boa parte do projeto "Dead Petz", e outros membros de sua banda, a Flaming Lips. Mas não fiquem com a ideia errada, ela avisou, jorrando glitter de entre as pernas, cercada por drag queens do "RuPaul's Drag Race": "Não sou hippie".

Em entrevista de mais de cinco horas dada no playground em Technicolor de Studio City, onde vive sozinha, Miley estava empolgada, cheia de vontade de compartilhar sua visão de mundo pura e atualizada. Em um momento, ficou dançando diante da porta enquanto as novas canções -algumas delas psicodélicas e circulares, outras de pop direto, menos sutil-saíam de seu estúdio modesto, de uma sala apenas (chamado "Love Yer Brain", título de uma canção do Flaming Lips).

No início de sua carreira adulta (ainda jovem), "as pessoas falavam coisas tipo 'a verdade é que ela tem um pessoal bom mexendo os pauzinhos para ajudá-la a fazer sucesso'", disse Miley, cercada de placas de parede em néon, um unicórnio recheado de papeizinhos de enrolar um alien roxo inflável. "Agora já faz tempo que falam 'ninguém está orientando Miley'".

À vontade, mas cheia de pique, usando leggings cinza, um sutiã esportivo preto e uma malha do Flaming Hoods com capuz, xingando como se estivesse atuando num filme de Tarantino, Miley se alternava entre sucos verdes e baseados verdes, explicando a evolução pessoal (incluindo a morte e o amor como ela nunca o conheceu) que a levou a este projeto.

Primeiro, em abril de 2014, foi a morte de seu cachorro amado, Floyd, abatido por coiotes enquanto Miley estava em turnê mundial de oito meses para divulgar "Bangerz". Duas semanas mais tarde, depois de chorar em alguns dos shows, Miley foi internada em um hospital do Kansas por mais de uma semana, com reação alérgica grave a antibióticos. Ali, recebeu a visita de Coyne, de 54 anos, um de seus heróis musicais, com quem tinha iniciado uma colaboração recente.

Miley Cyrus - Dooo It!

Mas foi apenas quando voltou para casa para buscar uma cura natural que as coisas ficaram "realmente doidas", ela contou. "Vai soar como maluquice, "mas um curandeiro chinês "me mergulhou num estado em que meu cachorro foi tirado de meus pulmões e posto sobre meu ombro", ela contou. "Passei tipo três horas fazendo carinho no meu cachorro", e, depois de finalmente falar a Floyd que precisava "se soltar e pôr sua energia para fora", disse ela, "acho que, de certo modo, a energia dele entrou dentro da energia de Wayne. Aquilo que Floyd foi para mim, Wayne se tornou."

Desde então, Coyne, que inicialmente chamou Miley para cantar em um cover de "Lucy in the Sky with Diamonds", dos Beatles, está atuando como mentor e facilitador artístico dela.

"Para Miley, a vida dela é arte", ele disse. "Se ela quer ter essa aparência e dizer essas coisas, ela faz exatamente isso."

"Bangerz" mostrou uma cantora pop renegada e liberta de seus grilhões fazendo experimentos com o poder que tinha acabado de descobrir -desagradando a algumas pessoas com seu turismo pelo hip-hop e os visuais provocantes–, mas os experimentos de identidade de "Dead Petz" mostram Miley como ela vive hoje: consciente de sua posição de porta-voz da cultura jovem e abertamente afeita a drogas, sexo, animais e o meio ambiente. "Eu criei o ambiente que me cerca, meu próprio mundo", ela disse. "Algo que pode parecer fantasia ou maluquice, para mim não é. É minha realidade." Como ela canta em "Slab of Butter (Scorpion)", "o autocontrole é algo que ainda estou aprendendo".

Quanto ao ritmo de suas reinvenções: "É assustador. Se um de meus amigos passa duas ou três semanas sem me ver, tem que me conhecer de novo, de certo modo. Minha alma sempre será a mesma, mas tudo à minha volta pode estar diferente. Eu vou estar me vestindo de outro jeito e talvez esteja cercada de pessoas de tipos diferentes."

Diferentemente de outras cantoras de 22 anos, quando Miley Cyrus declara suas paixões, ela o faz em escala maciça. Na nova coletânea de canções, os elementos rap desajeitados de "Bangerz" sumiram, mas resta um pouco do kitsch divertido, além da produção de Oren Yoel e Mike WiLL Made-It, de Atlanta, produtor e arquiteto principal do último som de Miley e colaborador de algumas das melhores canções ("Lighter", "I Forgive Yiew"). Mesmo assim, diz Miley, "o que Mike foi para 'Bangerz', Wayne é para este projeto".

Mike WiLL disse que viu em Miley Cyrus uma necessidade profunda de regeneração. "Por que ela faria outro 'Bangerz'? Miley é a nova Madonna."

Entre um álbum e outro, a vida pessoal de Miley também mudou. Depois de passar anos saindo da adolescência, em um processo acompanhado passo a passo pelos tabloides, Miley foi para dentro, virando "uma pessoa mais caseira", segundo ela própria. Ela passa a maior parte do tempo em casa, fazendo ioga, fumando maconha, brincando com seus muitos animais de estimação (incluindo um porco enorme) e fazendo arte ou música.

Enquanto uma pop-star como Taylor Swift pode reunir "músicos, atrizes, modelos e empreendedores" à sua volta, disse Miley, "eu não estou querendo fazer parte da turma. Nenhum de meus amigos é famoso, e por nenhuma outra razão senão a de que eu gosto de pessoas de verdade, que vivem vidas de verdade. Elas me inspiram."

Miley também procura controlar sua própria narrativa de celebridade, levando diretamente aos seus fãs uma versão dela própria que é sem mediação, embora bem burilada. "Coloco fotos de mim nua no meu Instagram. Não estou nem aí. Já deixou de ser interessante me ver assim."

Em 2014 Miley criou a Happy Hippie Foundation, entidade sem fins lucrativos para ajudar jovens sem-teto e LGBT. Ela diz que a organização a ajudou com sua própria autodescoberta. "Sinto que sou muito fluida na questão do gênero", explicou. "Durante muito tempo eu não entendia minha própria sexualidade. Eu ficava super frustrada e achava que nunca entenderia o que sou, porque nem sequer consigo decidir se me sinto mais menino ou menina. Foi preciso conversar com muitas pessoas trans para entender que não preciso decidir nada em relação a isso."

E há a influência de Coyne. "Ele é tudo no mundo. Nem dá para definir nós dois", disse Miley. "Estou 100% apaixonada por Wayne, e ele está apaixonado por mim, mas não é nada sexual, de nenhuma maneira. Isso seria asqueroso."

A presença de Coyne no disco é mais evidente em canções como "Karen Don't Be Sad" e "The Floyd Song (AKA Sunrise)", que trazem toques eletrônicos em cima de violão acústico -canções do Flaming Lips na versão de Miley Cyrus.

Mas os instintos pop naturais de Miley, sua voz forte e sua narrativa country muitas vezes falam mais alto que os modos padrão de seus colaboradores, garantindo que o projeto não escorregue demais para a obscuridade. "O elemento que aglutina tudo sou eu", disse Miley. "Não é o caso de eu me juntar com Wayne e agir de um jeito, bem cósmica, e depois me juntar com Mike e começar a fazer rap."

Como ela não pretendia que o álbum fosse tocado nas rádios, Miley teve liberdade para ser mais radical com sua persona libertina. Ela tem prazer em soltar palavrões e ser muito explícita em canções como "BB Talk", monólogo sobre um amante extremado, e "Bang Me Box", produzida por Mike WiLL, que trata do sexo lésbico e que, segundo Miley, é "dispensa explicações".

Foi a natureza pessoal e caseira do projeto -e a carreira nada tradicional de Wayne Coyne com o Flaming Lips-que persuadiu Miley a lançar o álbum pelo site de streaming SoundCloud.Ela disse que o álbum custou cerca de US$50 mil para ser feito (" 'Bangerz custou e milhões', mas desta vez sua gravadora, a RCA Records, não contribuiu para o custo. "Eles só foram ouvir o disco quando já estava pronto." Por isso, "Dead Petz" não será contabilizado em seu contrato, que prevê a criação de vários álbuns.

O selo disse em comunicado à imprensa: "Miley Cyrus continua a ser uma artista que trilha caminhos novos. Ela tem um ponto de vista forte sobre sua arte e expressou o desejo de compartilhar este conjunto de trabalhos diretamente com seus fãs. A RCA Records tem o prazer de apoiar a visão musical singular de Miley."
Miley Cyrus disse que é difícil se imaginar novamente enquadrada num molde mainstream. "Acho que não vou crescer assim", explicou. "Me parece que isso seria um retrocesso." Disse ainda que sua equipe de assessores "fala que nunca viu alguém do meu nível, especialmente uma mulher, desfrutar de tanta liberdade. Posso literalmente fazer o que eu bem entender. É uma coisa maluca."

Mesmo assim, "esta música não foi feita para ser uma rebelião. Foi feita para ser um presente."

Tradução de Clara Allain


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