Folha de S. Paulo


CRÍTICA

'Novelismo' não turva sutileza de 'Que Horas Ela Volta?'

O encontro proposto é promissor: uma atriz expansiva como Regina Casé e uma diretora que valoriza os gestos mínimos, Anna Muylaert.

O tema é quase uma obsessão recente do cinema brasileiro: a empregada doméstica como evidência da persistência do escravismo numa sociedade em que a elite resiste, desde sempre, ao trabalho físico.

Em "Que Horas Ela Volta?" seguimos a trajetória de Val (Casé), nordestina há muitos anos empregada numa mansão paulistana.

Ela cuida do jovem Fabinho desde que ele era criança, e é tratada por Bárbara, a patroa, como "pessoa da família". Isso até que entra em cena Jéssica, sua filha, que chega para prestar vestibular em São Paulo.

Bárbara então parece descobrir que Val não é bem uma amiga. Que essa história de filha de empregada no quarto de hóspedes ou pulando na piscina não é como ela vê a ordem natural das coisas. Pois, afinal, Val não é da família: apenas lhe era conveniente pensar assim.

É no princípio que estão os melhores momentos do filme, em que pequenos gestos mostram muito mais que os ostensivos. Ao entrar na história, Jéssica passa a explicitar situações que ninguém quer ver explicitadas, ou que ninguém nem mesmo sabe que existem.

A partir daí, algo estranho acontece: com Jéssica em cena, começam a se desenhar personagens que parecem estranhos ao trabalho de Muylaert: Bárbara se mostra quase uma vilã (ao menos desperta nossa simpatia); Carlos, seu marido, um sátiro tolo.

O que era uma situação com relações inconscientes (ou quase) de dominação e submissão evolui para um incômodo drama de heróis e vilões, ao qual não faltam as habituais paixões entre ricos e pobres, ações perversas da patroa etc.

O que se esboça ali é a tentativa de um cinema de compromisso, em que a autora não abdica da sutileza minimalista de seu estilo, mas introduz um pouco do, digamos, "novelismo" da Globo Filmes.

Desse compromisso pode resultar uma educação do gosto de um público limitado habitualmente a consumir formas muito desgastadas da convenção narrativa, ou a rejeição por esse público da ambiguidade que ele preserva.

A resposta virá, em boa parte, da relação que Regina Casé e seu personagem conseguirem estabelecer com o espectador neste que é certamente o filme mais arriscado de Anna Muylaert, pela ambição, mas também, talvez, o menos sólido.

QUE HORAS ELA VOLTA?
DIREÇÃO: ANNA MUYLAERT
ELENCO: REGINA CASÉ, KARINE TELLES, LOURENÇO MUTARELLI
PRODUÇÃO: BRASIL, 2015
CLASSIFICAÇÃO: 12 ANOS
QUANDO: ESTREIA NESTA QUINTA (27)


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