Folha de S. Paulo


Trajetória de Dr. Dre e do grupo de rap 'NWA' inspira filme

O grupo NWA, que trouxe o gangster rap para a corrente dominante, enfurecendo os conservadores e o FBI no caminho, veio com força e terminou rápido. A formação mais marcante -Dr. Dre, Ice Cube, Eazy-E, MC Ren, DJ Yella- manteve-se por apenas dois anos. Já o grupo como um todo durou cerca de cinco anos, do final dos anos 1980 ao início dos 1990.

Ainda assim, o NWA [sigla de Niggaz Wit Attitudes] reuniu várias vidas naquele curto espaço de tempo. Muitas das quais -mas não todas- ganham espaço no filme biográfico "Straight Outta Compton".

Nele, vemos os membros do grupo como adolescentes da cidade de Compton (subúrbio de Los Angeles) como colaboradores e, com o tempo, agitadores. O que não vemos muito, porém, são eles como astros bem-sucedidos do rap. À parte algumas cenas que mostram quão rapidamente o NWA se tornou um grupo que enche estádios, e alguns flashes dos excessos -basicamente dinheiro e mulheres- que vieram com seu triunfo, o período mais robusto do grupo é geralmente obscurecido no filme por outras preocupações.

O esvaziamento da era das maiores conquistas do NWA é coerente com o modo como Hollywood trata o hip-hop.

Como a maioria dos filmes de hip-hop anteriores, "Compton" é muito melhor ao captar o grupo -e por extensão o hip-hop- como produto da dificuldade. Naturalmente, ver pessoas que superam grandes adversidades graças a seus dons criativos tem um forte impacto narrativo. Todo mundo adora um azarão que dá certo.

Mas e um rei? Quando se trata de captar o sucesso do hip-hop -o período que vem depois da ascensão-, Hollywood é no máximo ambivalente. Se o hip-hop ainda fosse uma história de perdedores, isso seria compreensível, mas o gênero está no centro da cultura pop, tanto do ponto de vista comercial quanto do estético. Ele já cunhou várias gerações de astros. O cinema talvez seja o último lugar onde é infantilizado.

Há uma clara tensão entre as duas partes de "Compton": seu início heroico -em que cinco astros improváveis abrem caminho para a fama e a infâmia- e sua conclusão prolongada, cheia de discussões sobre contratos, o declínio e a morte de Eazy-E em 1995 (por complicações ligadas à Aids) e reconciliações sentimentais.

O filme pula capítulos desconfortáveis da ascensão do grupo -o ataque de Dr. Dre à apresentadora de TV Dee Barnes e as acusações de insensibilidade racial e homofobia em "Black Korea" e "No Vaseline" de Ice Cube-, em favor daqueles que fazem seus membros parecerem azarões que deram certo, como sua discussão pública com o FBI ("Notorious", em comparação, mostra o Notorious B.I.G. sendo violento com duas das mulheres mais importantes em sua vida, Faith Evans e Lil Kim).

Isso reflete, pelo menos em parte, quem está produzindo. Você pode sentir as mãos condutoras de Ice Cube, Dr. Dre e a viúva de Eazy-E, Tomica Woods-Wright -todos produtores-executivos- tentando melhorar a reputação do NWA.

"Compton" também se entrega à necessidade de finais bacanas em Hollywood. Dr. Dre e Ice Cube são vistos passando a seus próximos empreendimentos lucrativos: Dr. Dre sai da Death Row em fúria justificada e anuncia o nome de seu novo selo, Aftermath; Ice Cube trabalha no roteiro de "Friday", o filme que lhe daria seu primeiro lugar real em Hollywood, hoje seu lar. A saúde precária de Eazy-E e sua morte são usadas como história de advertência e uma oportunidade para os antigos membros aguerridos do grupo encontrarem um terreno comum.

Apesar de todos esses defeitos, "Compton" é uma raridade: um filme de hip-hop produzido em estúdio, com orçamento de US$ 29 milhões, segundo o "The Hollywood Reporter" (são US$ 9 milhões a mais que "Notorious" e aproximadamente US$ 12 milhões a menos que "8 Mile", de Eminem, ou "Get Rich or Die Tryin'", de 50 Cent).

Há muitos outros ótimos filmes biográficos de rap a serem feitos -sobre Jay Z, Master P, Sean Combs, Tupac Shakur, Lil Wayne e a história da Cash Money Records.

Em uma era de câmeras em funcionamento perpétuo, a possibilidade de um filme sobre hip-hop robusto, honesto e com altos e baixos só aumenta. E, de certa maneira, já existe um: "Tupac: Resurrection", o documentário póstumo impressionista de 2003 narrado quase completamente nas palavras do próprio Shakur. Ele foi um músico carismático e também um ator perspicaz. Um claro filho do NWA que compreende a arte da persuasão, ele fala francamente -sobre sua criação, sua ascendência improvável, sobre as más escolhas que fez no caminho e sobre coisas que só se revelariam más escolhas depois de seu assassinato em 1996.

Sua delicadeza e seu encanto resultam em um filme que entende o hip-hop não apenas como um meio de superar as dificuldades, mas também um lugar de emoções fáceis, uma zona de guerra que representa perigo real para seus heróis e um mundo sem finais bacanas.


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