Folha de S. Paulo


'Malafaia e Feliciano fazem parte do personagem', diz autor de ficção sobre pastor gay

Um pastor respeitado que viveu uma vida pregando contra os pecados decide descortinar sua trajetória como gay enrustido quando está à beira da morte. A sinopse de "Ovelha - Memórias de um Pastor Gay" (Editora Geração, R$ 30) já pode causar sobressalto. A leitura do romance de estreia do paranaense Gustavo Magnani, 20, causa mais ainda.

A ficção em formato de diário explicita a vida dupla do homem de fé. A narrativa é feita da cama de um hospital, em memórias quase póstumas e completamente abertas.

O autor, que frequentava uma igreja evangélica, já ouviu queixas de religiosos durante esta semana, em que o livro chegou ao mercado. "Mas acho que vou ouvir muito mais".

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O escritor Gustavo Magnani, autor do livro
O escritor Gustavo Magnani, autor do livro "Ovelha - Memórias de um Pastor Gay"

O lançamento paulistano acontece em 9 de setembro, às 18h30, na livraria Cultura do Conjunto Nacional, na avenida Paulista.

Magnani, que fundou o portal de literatura Literatortura e faz vídeos com centenas de milhares de espectadores na internet, falou à Folha de sua casa, em Guaíra, no Paraná.

Leia abaixo trechos da conversa.

FOLHA - Um pastor evangélico que contraiu uma doença venérea, vive um casamento de mentirinha e é bocarroto. Você fez pesquisa para esse personagem?
Gustavo Magnani - Todo o peso da religião e o sentimento de culpa, repressão e medo, não foram necessariamente pesquisados. Não tirei isso de nenhum livro ou de um momento em que parei para procurar racionalmente. Tirei isso do meu tempo na igreja. Foi curto, cerca de dez meses, mas muito intenso. Não tanto olhando pra mim, mas olhando para quem estava ao meu redor. Esse período na igreja me ajudou em várias instâncias da minha vida e até da minha carreira. Sou, até hoje, cristão. Mas, com ressalvas diante das religiões.
A parte de maior pesquisa, sem dúvida, foi para com o "universo gay": compreender os dilemas psicológicos e físicos cobrou de mim um estudo muito respeitoso, porque Ovelha não é um coadjuvante, é o centro de toda a trama e sua dualidade entre religião e sexualidade é o que move o livro. Fui, então, atrás de artigos científicos, livros reportagens. Entrevistei uma quantidade considerável de gays, que me ajudaram na construção da personagem. Mas, muito de Ovelha foi analítico, nenhum dos meus entrevistados sofrera tanta repressão da religião ou era um enrustido. Até porque, se fossem, eu não teria como entrevistá-los.

O livro chegou nas livrarias há pouco. Como vão as vendas?
A pré-venda foi ótima. Não sei se posso falar em números, mas uma das grandes redes realmente surpreendeu com a compra que fez. Foi quase o dobro do carro chefe da editora. Teremos uma noção melhor apenas no final do mês, na prestação da contas das livrarias. Estarei acompanhando com curiosidade.

Recebeu alguma queixa de religiosos?
Como o livro acabou de chegar às livrarias e nós mal começamos as ações que temos planejadas, acho que ouvirei muito mais.
Há algumas semanas, quando a polêmica do Boticário [que fez um comercial de Dia dos Namorados em que um casal gay aparecia se abraando] estourou, gravei um vídeo para o Youtube em resposta ao [pastor Silas] Malafaia, que ultrapassou os 100 mil views. Ali, ouvi de tudo. Que sou enrustido, que quero chamar atenção, que não sou cristão, que não conheço a bíblia, que sou um herege, que sou guiado pelo satã, que minha família deve ter vergonha de mim, que eu preciso aceitar Jesus, que se eu debatesse com o Malafaia, ele me esmagaria. Ora, tenho sérias dúvidas. Tais pastores possuem um discurso repetido, que nasce e morre no mesmo lugar, fugindo das perguntas essenciais. Seria um prazer debater com qualquer pastor. E falo isso com todo o respeito.
Porém, alguns desses agressores foram para meu chat [mandaram mensagens pessoais, que só o dono da página pode ver]. Isso é ofensivo. Mas, como cristão, busco meu preparo em outro lugar e isso é o que mais dói nessas pessoas. Elas não aceitam que eu acredite em Deus, que eu acredite em Jesus Cristo. Pra eles, é um absurdo. Pra eles, Deus é propriedade privada e eu não posso comprá-lo.
Melhor assim. Nesse Deus deles, não tenho interesse algum. Uma coisa sou eu, outra coisa é minha literatura.

De onde veio a vontade de fazer ficção?
Minha leitura começou tarde, pelos 13 anos. Quando li meu primeiro livro por puro prazer, decidi que era aquilo que eu gostaria de fazer. Logo depois, entrei pra igreja e achei que seria pregador, deixando a ficção narrativa de lado. Ledo engano. A literatura sempre volta.
Comecei a escrever aos 14, logo depois, contratei um consultor profissional. Com o auxílio dos meus pais, comecei a trabalhar pra poder pagar. Aprendi sobre estrutura, técnica, construção e não parei mais de estudar literatura. Quase tudo que aprendi aos 14, foi subvertido em Ovelha. Além de contos, crônicas e artigos, também escrevi um livro de fantasia, entre os 14 e 18, mas esse ficará mais dentro do armário do que meu pastor.

Como foi o processo de conseguir ser publicado aos 20 anos?
Nossa procura começou pelas editoras de maior nome. Sabíamos que seria difícil. Não é um livro fácil. Chegamos a evoluir conversa com alguns editores, recebemos elogios de outros, mas, no final, não fechávamos contrato. O tema e a forma como ele era tratado sempre nos emperravam. Eu tinha uma fé grande em uma editora que admiro. A conversa cresceu com eles. Mas, no final, argumentaram que o livro precisaria de uma atenção especial a qual a casa, naquele momento, não poderia dar. Fiquei chateado, é claro. Mas, compreendo o lado de todos. Não levo esse tipo de coisa pro pessoal. E quando, então, a Geração disse sim, foi uma alegria enorme. Não só por estar em uma grande casa, mas, porque hoje eu sei que fechamos com a melhor editora que poderia publicar. Eles são corajosos, não fogem da responsabilidade e assumem riscos. Tem vez que chega um e-mail e eu penso "Vocês vão fazer isso mesmo?" e eles vão. E isso é maravilhoso pro autor.

A obra é só um exercício estético ou tem algum caráter político?
Toda obra tem, em algum grau, caráter político. Mas "Ovelha" não ergue bandeiras. Isso é muito importante que seja dito. "Ovelha" não é um livro pró-LGBT ou pró-evangélicos. É um livro. Existem coisas, na obra, que sairiam da minha boca. Outras, jamais passariam perto. O que cabe ali, pra minha voz, é uma questão de coincidência. O que fiz questão de ter é uma ou outra referência velada a figuras como Marco Feliciano [pastor e deputado pelo PSC-SP] e Silas Malafaia [pastor e apresentador de TV], porque eles fazem parte da mente do meu personagem. Eles também são responsáveis pelo sofrimento que "Ovelha" carrega.

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Quanto tempo levou para o livro ser escrito?
O livro levou 40 dias para ser finalizado. Muitos dos meus leitores acompanharam essa criação por Facebook, e foi algo incrível. O livro vai pros leitores betas, volta pra mim, vai pra outros, volta pra mim. Reviso. Reviso. Reviso. Por ser escrito em fragmentos, eu repenso toda a estrutura, divido capítulos por intensidade, tamanho e tema e os encaixo da maneira como eu acredito que eles devam estar no livro. O leitor pode discordar de tal ordem, mas tal ordem foi estabelecida com um propósito. Quase nada é arbitrário no texto. Eu divido meu tempo com o trabalho no Literatortura, meu site de literatura, com o canal no Youtube e com outras páginas que possuo, além de trabalhos por fora que acabo fazendo. É preciso disciplina, sempre.


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