Folha de S. Paulo


Nove textos de José de Alencar são descobertos no 'Correio Mercantil'

Escritos de um José de Alencar que, aos 20 e poucos anos, travava seus primeiros contatos com a imprensa foram localizados, no mês passado, em meio a 11 milhões de páginas de periódicos no site da Hemeroteca Digital, da Biblioteca Nacional.

Veiculados no "Correio Mercantil" de 1851 a 1855 e nunca editados em livro, nove textos do célebre autor romântico (1829-1877) foram resgatados por um pesquisador durante estudo sobre a presença de escritores no jornal carioca.

O mais antigo é uma resenha que o futuro autor de "Iracema" (1865) fez do livro de poemas "Dores e Flores", do luso-brasileiro Augusto Emílio Zaluar. Saiu em duas partes, em 30/7 e 23/8/1851, assinada por "Alencar".

Reprodução
O jornal 'Correio Mercantil com texto de José de Alencar
O jornal 'Correio Mercantil com texto de José de Alencar

Os outros oito textos são crônicas veiculadas de setembro de 1854 a julho de 1855 na seção "Ao Correr da Pena", sob a assinatura "Al." Elas ficaram de fora da primeira coletânea de "Ao Correr da Pena", feita com permissão de Alencar, em 1874, e de todas as posteriores –a mais recente é de 2004.

O material foi identificado por Wilton Marques, 50, professor da Universidade Federal de São Carlos, que há quatro meses localizou no mesmo jornal um poema desconhecido de Machado de Assis. Marques encontrou os novos textos pesquisando para um livro sobre o poema, cuja descoberta foi noticiada pela Folha.

Ao levantar dados sobre outros escritores que publicaram no "Correio Mercantil", ele se deparou com 45 crônicas do "Ao Correr da Pena", em vez das 37 que entraram nas coletâneas. Na sequência, achou a resenha de 1851.

ARTIGO PAGO

Ao menos quatro dos nove textos foram citados em estudos sobre Alencar, embora não tenham aparecido na íntegra nos últimos 160 anos. Agora, podem ser lidos na Hemeroteca Digital (memoria.bn.br), no ar desde 2012, com fac-símiles de 5.000 jornais e revistas desde o século 18.

Até publicar a resenha de 1851, numa seção de artigos pagos do "Correio Mercantil", Alencar só tinha escrito para uma revista estudantil criada com colegas da faculdade de direito, em São Paulo.

Recém-formado, aos 22 anos, e empregado num escritório do Rio, ele escreve sobre o livro de Zaluar: "Quero contar essa história: é simples e natural; é o sentir íntimo e suave que perfuma as folhas deste livro, e que se insinua docemente no coração de quem o lê e compreende."

Nove anos depois, a resenha foi citada em verbete sobre o já famoso José de Alencar no "Dicionário Bibliográfico Português". Esse verbete serviu de base para estudos posteriores que mencionaram o texto de 1851, sem aparentemente localizá-lo.

As crônicas do "Ao Correr da Pena", iniciadas três anos depois daquela primeira resenha, marcam a transição de Alencar da advocacia para o jornalismo.

Entre as nunca coligidas em livro está uma de 10/9/1854, domingo seguinte ao da estreia da coluna (veja reprodução e leia texto nesta página).

Até hoje, acreditava-se que ele ficara sem escrever entre os dias 3 e 17, enquanto se familiarizava com o formato de folhetim, nome então dado a esses resumos jornalísticos e literários das semanas.

'BICHINHOS'

As colunas tratam com ironia temas como os festejos do 7 de Setembro ("Em prosa o dia pode amanhecer chovendo: mas em verso, tenha paciência, há de ser, quer queira quer não, límpido, esplêndido e radiante") e a chamada "máquina-deputado", que "serve para votar, levantando-se e sentando-se para dar apartes".

Numa delas, de 28/1/1855 –a mais citada em estudos dentre as inéditas em livro–, o autor ironiza a ideia de a literatura se aproximar da cultura indígena, procedimento ao qual recorreria dois anos depois, em "O Guarani".

O texto debocha de uma "mina ainda não explorada de imagens poéticas, uma multidão de nomes fanhos, de frutas, de coquinhos, de bichinhos, de cipós, que devem ser de uma originalidade encantadora".

Na biografia "O Inimigo do Rei" (2006), Lira Neto incluiu trechos dessa e de mais duas crônicas que ficaram de fora das coletâneas, sempre tratando do nacionalismo na literatura.

"Não há prova de que Alencar tenha pedido para excluí-las, mas é possível que sim, já que mudou de opinião sobre o que disse nelas", diz Neto. Outra hipótese é que os textos tenham se perdido pela dificuldade de pesquisa na época.

Wilton Marques, que planeja edição comentada dos textos, diz que "só um estudo mais aprofundado confirmará se foi intencional".

"É fantástica a descoberta e possível publicação desses textos. É um indicativo de que muita coisa ainda pode vir à tona com a ajuda da tecnologia", resume Lira Neto.


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