Folha de S. Paulo


Novo livro de Marcelo Rubens Paiva é construído sobre memórias familiares

"Ainda Estou Aqui", diz Marcelo Rubens Paiva no título de seu último livro. Sim, ele ainda está. Após 33 anos, Marcelo está de volta com seu relato autobiográfico, pela primeira vez desde "Feliz Ano Velho", sucesso de 1982 que o projetou nacionalmente.

Escrito em primeira pessoa, é uma espécie de continuação do best-seller dos anos 1980 do autor, ainda que bastante diferente.

"'Feliz Ano Velho' foi feito para falar da deficiência física, de um cara de 22 anos que gostava de namorar, que bebia com o Renato Russo e o Clemente, dos Inocentes. Era um livro de aceitação de uma vértebra quebrada."

Eduardo Anizelli/Folhapress
Marcelo Rubens Paiva, autor de 'Ainda Estou Aqui
Marcelo Rubens Paiva, autor de 'Ainda Estou Aqui'

Este é diferente. Para começar, Paiva nem sequer comenta a deficiência física. Apenas cita duas vezes, de passagem, sua cadeira de rodas. A primeira delas no início do livro, quando seu filho de 18 meses tenta escalá-la para subir no peito do pai "Ele é muito bonitinho, né?"

A obra, então, é fruto do novo amor que sente, pela criança loira como o avô, e parece que estaremos diante de uma descrição sem fim de um pai babão pelo filho lindo.

A MÃE

"Ainda Estou Aqui", diz a mãe de Marcelo Rubens Paiva, Eunice, num sussurro que nem sequer é proferido, que parte e morre no fundo de seu cérebro emaranhado pelo rodamoinho do alzheimer. Aos 85, a advogada tem a doença desde 2004, quando a família reparou nos primeiros lapsos de memória.

Em 2005, teve dificuldades com dinheiro. Em 2006, temeu embarcar num avião. Em 2007, deixou de dirigir. Em 2008, reclamou que a comida ficou sem sal. Em 2009, caminhar ficou complicado. Em 2010, foi ao banco e não soube voltar. Em 2011, sentou-se na cadeira de rodas, como o filho de 56 anos.

No meio dessa espiral trágica, em 30 de janeiro de 2008, Eunice Paiva, Marcelo e sua irmã Veroca estiveram no fórum João Mendes para tomar uma atitude radical. Eunice Paiva, advogada "especialista em interditar pais dos amigos, tida como advogada de confiança, estava para ser interditada às 14h45".

Foi. "A partir desta data, o senhor [Marcelo] é responsável jurídica e criminalmente pela sua mãe." Uma coisa só Eunice não esquece: pega os dedos de Marcelo sob o braço da cadeira e os alonga, um a um, ato de amor materno que cometeu durante 35 anos.

O PAI

"Ainda Estou Aqui", diz Rubens Beyrodt Paiva, engenheiro, deputado federal em 1963 e 1964, cassado pelo golpe, retirado de casa em 20 de janeiro de 1971, quando se preparava com sua família para ir à praia em frente à sua casa, no Leblon, levado ao DOI-Codi, na Tijuca, espancado, pisoteado na barriga, morto na madrugada do 21 para o 22, depois provavelmente esquartejado e enterrado na restinga de Marambaia, sob a areia de 42 km de praia que pertence à Marinha do Brasil.

"A morte do meu pai não tem fim", escreve Marcelo. Houve a Lei da Anistia em 1979, que perdoa crimes cometidos por militares e guerrilheiros durante a ditadura o que teoricamente os livraria de processos. Mas a lei não abarca tudo o que fizeram. Podem, por exemplo, ser condenados na Justiça comum por ocultação de cadáver.

"Ainda Estou Aqui", assim, é uma reposta para quem pede pela volta dos militares nas ruas de hoje: "Vocês não sabem o que é ditadura".

O SUSTO

No final da manhã de 21 de janeiro de 1971, a mãe, Eunice, e a irmã mais velha foram levadas ao DOI também. O pai pedia água. As duas ficaram encapuzadas. Responderam perguntas e viram fotos. A filha foi liberada em seguida. A mãe ficou jogada numa cela até 2 de fevereiro.

Na página 221, Marcelo tem um insight espantoso: "Eu não tinha percebido, mas estava evidente. Entendi por que minha mãe e irmã tinham sido presas um dia depois. E tomei um susto enorme".

"Você sabe, mamãe, por que foram levadas ao DOI? Ele não falava nada. Foi torturado no dia 20. Nada. Retomaram no dia 21. Com a filha e a mulher encapuzadas, sentadas num banquinho. Será que ele viu vocês? Como ele reagiria? O que ele faria, para impedir que encostassem em vocês?"

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Marcelo atualiza essa ideia com um email enviado no dia seguinte à entrevista: "Depois do nosso papo, fiquei refletindo. Pensei numa outra hipótese para as prisões da minha mãe e irmã. Talvez tivessem sido retidas apenas para reconhecer fotos nos álbuns de procurados".

"Porque, nos 12 dias, minha mãe falou que era sempre chamada para ver fotos. Queriam saber quem frequentava a nossa casa, contatos que meu pai teria. E nem pensaram em torturá-los juntos. Nunca saberemos o porquê. Abs."


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