Folha de S. Paulo


'Meu sentimento é de que não influenciei ninguém', diz Woody Allen

Prestes a completar 80 anos, Woody Allen segue sua rotina: acorda cedo, leva os filhos adolescentes –adotados com a mulher, Soon-Yi Previn, filha adotiva de sua ex-mulher Mia Farrow– para a escola, caminha na esteira e depois passa horas na cama ou na máquina de datilografar que o acompanha há mais de 60 anos.

É assim que Allen, um dos cineastas mais importantes da história, continua a dirigir e escrever um filme por ano.

No mais recente, "Homem Irracional", previsto para estrear no Brasil no dia 27, o nova-iorquino conta a história de um filósofo superstar, interpretado por Joaquin Phoenix, que reencontra a felicidade quando se envolve com uma aluna (Emma Stone) e comete um ato "irracional".

Durante o Festival de Cannes, no qual o longa foi exibido fora de competição, em maio, Allen falou à Folha sobre morte, frustrações, mulheres bonitas e o projeto no Rio que nunca foi adiante.

Damon Winter/The New York Times
Woody Allen posa para foto em set de filmagem nos EUA, em 2014
Woody Allen posa para foto em set de filmagem nos EUA, em 2014

Você ainda gosta de divulgar seus filmes para a imprensa em grandes festivais como Cannes?
Gosto de vir para Cannes, mas o problema de encontrar a imprensa é que [os produtores] esperam que você promova seu longa, mas não quero ser aquela pessoa que diz como o filme é ótimo. Então, é meio constrangedor. O que eu tenho a falar é irrelevante, porque eu dirigi e escrevi o filme, então claro que vou dizer que tal coisa é maravilhosa, que a construção da cena foi bem interessante, mas estarei mentindo (risos).

Mas você precisa falar porque deseja vendê-lo para o mercado.
Exatamente. É constrangedor para mim [vender um filme]. Não é como se estivesse fazendo um abridor de latas ou um produto em liquidação. O que estou tentando fazer, em tese, é um trabalho de arte. E você precisa vender essa arte. No entanto, você imagina Picasso batendo em portas, mostrando pinturas para as pessoas e dizendo que pode colocar mais vermelho na tela se ela quiser? É constrangedor.

Não acha engraçado que todas as vezes que você lança um filme algum crítico apareça com a frase "Woody Allen está de volta à velha forma"?
Nunca leio sobre mim mesmo porque as pessoas sempre entendem errado. Mesmo quando querem ser gentis, e elas são gentis, entendem errado (risos). Quanto menos penso em mim mesmo, melhor fico. Se começar a ler que sou maravilhoso ou horrível, essas coisas grudam na mente e causam perda de tempo. Não penso sobre isso e não leio críticos ou entrevistas comigo. É mais saudável assim.

Ao mesmo tempo, você é um pensador e esse novo filme é sobre comportamento e nosso lugar no universo. Então, chega a surpreender que não leia sobre si mesmo ao mesmo tempo que divaga no propósito da sua existência e seu propósito no mundo.
Sim, me preocupo bastante com minha mortalidade (risos). São questões que sempre me incomodaram. Não me considero um cineasta político em meu trabalho, mas sou como cidadão. Eu voto, faço doações para pessoas que gosto e a apoio nas eleições, mas quando falo de arte e filmes, estou interessado nos temas existenciais. Mesmo que seja para fazer piadas a respeito disso.

Quando você tomou consciência da própria mortalidade?
Acho que foi em uma idade parecida com a de todo mundo, em torno dos cinco, quatro anos.

Tão cedo?
Ah, isso acontece. Você toma consciência disso e psiquiatras e psicólogos dizem que é uma idade normal.

Mas você soube, aos cinco anos, que todo mundo iria morrer um dia, seu pai, sua mãe?
Sim.

Então, você encarou isso de maneira filosófica ao invés de seguir em frente e enfiar a cabeça em gibis?
Correto. Há pessoas que são melhores ajustadas que eu que falariam: "Tudo bem, é algo inevitável, que é a condição humana e vou aceitar e aproveitar a vida". Mas não consigo fazer isso. Sou mimado, penso como a morte vai estragar tudo. E, se esse é o caso, vou pegar minha bola e levar para casa. Se essas são as regras, não gosto do jogo e sou o dono da bola. É uma péssima reação (risos).

Mas você está aqui, prestes a completar 80 anos, e com uma carreira ainda ativa e brilhante. Acho que você se deu bem no fim das contas, não?
Tive muita sorte neste sentido, preciso admitir. Nunca fui estudioso e não era bom aluno. Eu era atlético quando jovem e estava interessado em esportes e ouvir jazz, nada cerebral demais. Nunca lia livros e, então, fui expulso da Universidade de Nova York. Me falaram que era um péssimo aluno e não podia ficar lá mais. Porém, tive a sorte de saber, por alguma razão inexplicável, escrever piadas. Ninguém na minha família era engraçado ou participou do showbusiness em algum momento das suas vidas. Mas eu escrevia piadas boas com 15 anos e as pessoas compravam e achavam engraçadas. Então, contar piadas salvou minha vida e passei a trabalhar no teatro e na televisão. Você ganha uma quantia exagerada no entretenimento e, em pouco tempo, eu estava fazendo mais dinheiro com piadas do que meu pai em toda sua vida. Depois, fui dirigir filmes e atuar, mas tudo foi questão de sorte. Muita gente tem ouvido para piadas e são engraçadas em casamentos, mas tive muita sorte, não apenas a capacidade de reconhecer boas piadas.

Sentiu-se culpado por ter começado a ganhar mais dinheiro que os pais?
Não, eles ficaram empolgados. Minha mãe trabalhava em uma floricultura e meu pai fazia bicos... era motorista de táxi, garçom, barman, joalheiro. Então, quando escrevia umas poucas páginas com piadas ou fazia um programa de rádio, recebia um cheque maior que meus pais recebiam juntos por um mês.

Eles te achavam engraçado?
Eles não sabiam. Eles viviam tão fora de casa para trabalhar que só descobriram isso anos depois, quando viram que meus filmes estavam sendo aceitos pelo público. Ficaram mais relaxados com isso. Até aquele momento, no entanto, eles não conheciam direito a indústria do entretenimento e não tinham uma opinião formada para dizer se eu era bom ou ruim. Talvez tenha sido bom.

Ao mesmo tempo, você queria ser o Ingmar Bergman americano. Ser um cineasta sério.
Sim, eu queria ser sério, escrever tragédias e virar Eugene O'Neill, Bergman ou Tennessee Williams. Queria escrever dramas pesados e poderia fazer isso, mas ninguém me dava oportunidades. Eles me contratavam porque precisavam de alguém que soubesse escrever comédia e poucas pessoas sabiam fazer isso. Então, topei, mas queria fazer outras coisas. Quando comecei a fazer filmes, ninguém financiaria se fosse um drama, apenas quando eu dizia que iria fazer uma comédia. Só mais tarde, depois de "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa" (1977) e outros filmes, que a United Artists me disse: "Ok, pode fazer um filme sério se quiser." Fiz "Interiores".

Bertrand Langlois/AFP
Woody Allen e sua mulher, Soon-Yi
Woody Allen e sua mulher, Soon-Yi

Por que ser engraçado não é suficiente?
Bem, por várias razões. Acho que a maior delas é que menosprezamos o que temos de talento natural. Ser engraçado, para mim, não significa nada. Mas quando vejo alguém desenhando, acho maravilhoso, porque não consigo fazer isso. É assim que me sinto em relação à comédia, então nunca dei muito valor, porque sempre achei fácil. Quando eu ia para o cinema ver Bergman, me divertia muito mais do que em uma comédia. Eu podia rir, mas nunca me emocionava e tudo era esquecido assim que saia do cinema. Mas, se assistia a um filme sério, tipo "E O Vento Levou...", achava mais interessante e gostava muito mais. Para mim, comédia é como uma sobremesa e os filmes sérios são os pratos principais (risos).

Mas você costuma brincar sobre Deus, existência e grandes temas sem seus filmes cômicos.
Sim, mas foi acidentalmente. Escrevi as comédias que achava engraçadas naquela época e sobre as questões que estavam na minha mente. Se estivesse interessado sobre outro assunto mais banal, pode ter certeza que teria escrito sobre isso. Mas nunca falei para mim mesmo que só escreveria comédias sobre mortalidade e o sentido da vida. Apenas sentava e tentava ser engraçado sobre o que me interessava.

Você disse que é fácil fazer comédia, mas também admitiu dificuldades para escrever sua série para a Amazon. E ela é uma comédia.
Sim, mas estou tendo dificuldades porque não estou acostumado a escrever em seis partes. Estou acostumado a fazer aquela coisinha boba que faço todos os anos e lançar um filme, e sei onde estão o início, o meio e o fim, toda a estrutura. Mas escrever uma série é estranho, porque você escreve por 15 minutos e precisa terminá-la e precisa ter um gancho empolgante para o próximo episódio. É muito, muito difícil.

É uma espécie de volta aos seu início de carreira, como retratou em "A Era do Rádio".
Sim, cresci ouvindo seriados no rádio e nos cinemas, não havia nada mais naquela época. Eram divertidas. E tenho certeza que todas essas séries do Netflix e da Amazon são deliciosas e têm pessoas que escrevem bem e possuem carinho por elas, mas eu não sou uma delas. Então, estou batalhando duro.

Ironicamente, o filósofo e escritor de Joaquin Phoenix em "O Homem Irracional" passa por um bloqueio criativo. Já teve algo semelhante?
Nunca tive esse problema. Já certas coisas que não consigo entender. Não consigo me imaginar com algum bloqueio criativo, porque não funciono assim. Há pessoas que me perguntam se eu nunca penso que posso acordar um dia e não ser engraçado. Mas não funciona assim. Quando escrevo ou falo, as coisas saem engraçadas naturalmente. Não sei porque, mas não é algo que vai embora de repente.

O que vem antes quando você escreve: o personagem ou o tema?
Neste caso, o tema do filme veio antes e precisei criar o personagem para contar aquela história específica. Sabia que linha filosófica queria inseri-lo, então decidi que seria um professor. Pensei por dois meses e finalmente tudo ficou claro.

Há uma linha óbvia que podemos seguir nos temas dos seus filmes desde "Um Assaltante Bem Trapalhão"?
Há temas recorrentes, mas acidentais. É como uma psicanálise: você fala e fala e fala e o médico não abre a boca. Depois de cinco anos, você nota que alguns assuntos aparecem frequentemente e, então, possuem algum significado. Então, ao longo dos anos, mesmo nos meus primeiros filmes, há um assunto presente: amor e morte. Você pode achar que há milhares de piadas diferentes neles, mas são todas sobre vida e morte, mortalidade e escolha. Não há nenhuma resposta, são apenas piadas. E tenho feito muita coisa sobre mágica, porque ela está relacionada à religião. Ambas falam sobre algo que não podemos ver, que existe uma força além, mas, no fim, não são verdadeiras. Tudo que temos está na nossa frente. Não há mágica, ninguém vai te salvar.

Em "O Homem Irracional", o personagem decide matar alguém para tomar uma decisão irracional. No começo, isso funciona e parece mudar sua vida para melhor, mas é irracional. Ao mesmo tempo, não é mais maluco que se você conversar com um católico fervoroso e ele falar que vai levar uma vida honesta para poder subir ao Paraíso abençoado. De certa maneira, isso é uma loucura também, porque nada vai acontecer quando ele morrer; não vai começar a flutuar e partir para o céu. Ou na religião judaica, quando Moisés divide o mar. Isso é loucura.

Mas, em ambos os casos, ajudam as pessoas a suportar melhor a vida. No caso do personagem de Joaquin, é um pensamento perigoso, mas, no caso da religião, está provado que milhões de pessoas morreram ao longo dos séculos por causa da religião. Então, você pode rastrear nas minhas obras uma preocupação. Quando comecei, era pessimista e isso não mudou. O trabalho do artista, na minha visão, é mostrar as pessoas que tudo que vocês estão fazendo é insignificante e que tudo vai desaparecer um dia. Então, aproveitem a vida. Se há um lado positivo, acho que falhei em encontrar nos meus 45 filmes. A minha maior contribuição é tentar distrair as pessoas por duas horas, fazê-las esquecer como a vida pode ser terrível e dos problemas. Meus filmes são como um copo de água gelado em um dia quente de Verão.

Mas você inspirou diversas gerações de roteiristas e diretores.
Não sei. Me inspirei em diversas pessoas e meu sentimento, e não digo isso para ser modesto, é que não influenciei ninguém. Mas não me incomodo. Olho para meus contemporâneos e vejo a influência de Martin Scorsese, alguém que é ótimo, em todos os lugares. Posso ver a influência de Steven Spielberg, mas não a minha. Se você ler qualquer entrevista com jovens cineastas, sempre vão citar Scorsese ou Star Wars, mas meu nome nunca aparece. A prova disso é que você não enxerga minha influência nas telas do cinema. Mas tudo bem. Não é ruim influenciar as pessoas, mas eu não o fiz e não me incomodo com isso.

Poderia dizer que você, no mínimo influenciou diversas coleções de discos.
Bem, isso pode ter acontecido. A parte mais prazerosa de filmar é colocar a música na trilha. Quando você termina um longa, ele está frio e sem vida, então vou para minha coleção e escolho uns discos de, por exemplo, Mozart ou Louis Armstrong, e começo a testar. De repente, coloco Ramsey Lewis e o filme ganha vida. Não tem nada a ver com ser inteligente, mas com erros e acertos.

Com as mulheres dos filmes são assim também?
Bem, aí não tem como errar (risos). Certamente trabalhei com as mais amáveis mulheres do cinema desde o começo. Janet Margolin era linda e Diane Keaton era linda quando jovem e, então, trabalhei com Scarlet Johansson, Charlize Theron. Até Mia Farrow, com quem terminei brigando, era linda. Agora, não consigo imaginar alguém tão bonita quanto Emma Stone. Foram tantas atrizes incríveis.

Por que é tão fascinado por atrizes bonitas, além do apelo visual?
Um dos grandes prazeres da vida é olhar para uma mulher bonita. É maravilhoso e faz se sentir melhor. Uma das melhores coisas do cinema é trabalhar com mulheres bonitas. Se eu tivesse ido trabalhar em uma farmácia, como minha mãe queria, talvez visse uma mulher linda de vez em quando, mas nos filmes posso vê-las todos os dias. Vou trabalhar às 7 da manhã e lá está Emma Stone, ou Naomi Watts ou Scarlett Johansson parecendo uma deusa. E isso dura meses (risos). Então, é uma ótima maneira de ganhar a vida. Até os homens são charmosos. É divertido trabalhar com uns sujeitos bonitões e carismáticos. Fiz filmes com Colin Firth, Michael Caine, John Cusack, Colin Farrell e... (pausa) Bem, não consigo me lembrar tão facilmente dos homens quanto das mulheres (mais risos).

Woody Allen entre Emma Stone e Parker Posey, estrelas de 'Um Homem Irracional', em Cannes
Woody Allen entre Emma Stone e Parker Posey, estrelas de 'Um Homem Irracional', em Cannes

Você poderia ter sido um escritor, mas imagino que não encontraria tantas mulheres assim.
Há vantagens e desvantagens. No cinema, se eu vejo uma cena e não gosto, custa US$ 1 milhão para mudar. E nem sempre tenho um milhão (risos), então tendo consertar, o que nem sempre é possível. Nos livros, você apenas joga fora as páginas e reescreve. O lado ruim é que você fica obcecado por cada palavra e leva anos para escrever um livro. É como lapidar um diamante, mas descobri, ao escrever um livro, que não sou um perfeccionista, então prefiro que os atores testem meus diálogos até funcionarem. Livros são mais precisos.

Como é sua rotina diária?
Acordo cedo, por volta das 6h30, tomo café e levo as crianças para a escola. Na volta, ando na esteira e, depois, me sento na beira da cama para escrever com uma caneta e um caderno. Quando tenho o filme todo escrito dessa maneira, vou para a máquina de escrever e essa é a parte que eu odeio, mas ninguém pode fazer por mim, porque minhas anotações nos cantos dos cadernos são incompreensíveis para alguém de fora. Datilografo uma cópia e vou para a cama de novo para ajustá-la.

Você não tem um computador?
Não. Uso a mesma máquina de datilografar desde que comecei a carreira. Tinha 16 anos quando a comprei por US$ 40. É uma Olympia portátil que funciona bem até hoje. Só precisei mudar a fita nestes 60 anos.

Você não cai no sono escrevendo na cama?
Não, porque dormi a noite toda. E estou bem fisicamente. Não pensaria duas vezes em encostar minha cabeça no travesseiro e dormir caso me sentisse cansado, mas não gosto de sonecas.

Por falar nisso, fico feliz de vê-lo está ótimo fisicamente...
Ah, acredite, ninguém fica mais feliz do que eu (risos).

Nestes 80 anos, quais lições você aprendeu na vida?
Você aprende certas coisas e acredita que se tornou mais tolerante com as pessoas, menos rabugento e compreende que as pessoas têm os mesmos problemas e inseguranças que você tem. Então, ficamos melhor neste sentido, porque fica consciente do sofrimento alheio e tende a se importar mais com as pessoas. Mas não aprendemos muito. Falando de cinema, você aprende tudo que precisa ao fazer dois filmes apenas. No primeiro, eu não sabia fazer nada e (o montador) Ralph Rosenblum e (o diretor de fotografia) Gordon Willis me ensinaram tudo. Você aprende fácil e, quando tem uma boa ideia, as coisas tendem a fluir tranquilamente.

Você falou sobre música e mulheres bonitas e, no Brasil, temos as duas coisas. O que aconteceu com os planos de filmar no Brasil?
Não sei muito sobre o Brasil além do que aprendemos na escola, que vocês fazem um bom café (risos). Então, eu precisaria ir para o Brasil e aprender mais sobre o país, conhecer o Rio de Janeiro para ver como a cidade funciona. Mas não pensaria duas vezes em ir para o Brasil, é um país que você cresce ouvindo de forma exótica e romântica e parece incrível, mas não faço ideia de como começar um filme em um lugar sem conhecê-lo. Se faço um longa em Londres, sei onde estão os restaurantes, os parques e conheço as ruas. Mas, no caso do Brasil, não tenho certeza do que fazer. Preciso passar uma semana no Rio para encontrar a sensibilidade da cidade.


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