Folha de S. Paulo


Bienal de Cuba testa limites da censura

A magnífica deterioração de Havana serve de cenário para muitos dramas ambientados no passado, no presente e no futuro.

Foi nesse palco que a 12a edição da Bienal de Havana teve lugar. Como era de se esperar, as obras mais interessantes falavam de mudança, não de embelezamento, e consistiam em eventos e performances, não em objetos estáticos.

A Bienal como um todo foi concebida de acordo com linhas abstratas e bastante diferentes entre si, como sugere o título "Entre a Ideia e a Experiência". O objetivo era voltar as atenções para as ideias, integrando a arte à cidade e às suas diversas comunidades.

Lisette Poole/The New York Times
Ensaio para a ópera
Ensaio para a ópera "Cubanacan", no Instituto Superior de Arte em Havana

Essa era a ênfase correta numa sociedade que continua definindo-se como socialista, apesar da economia capitalista que lentamente se insinua.

No bairro de Havana Velha, o artista indiano Nikhil Chopra se trancou por três dias numa jaula e, em silêncio, pintou lindas imagens do que ele via por trás das grades. Tratava-se de uma inteligente sacada sobre a noção do artista-ilha. Quando ele serrou a grade e ganhou a liberdade, tarde da noite, uma entusiasmada multidão se formou para recebê-lo.

A maravilhosa artista cubano-americana Maria Magdalena Campos-Pons, que atualmente leciona na Escola do Museu de Belas Artes de Boston, trouxe um grupo de seus alunos para o bairro de Casablanca, na periferia de Havana. Os alunos fizeram perguntas aos moradores: o que eles acham do restabelecimento das relações com os EUA? Acham que a arte poderia contribuir para o diálogo intercultural?

Algumas das respostas foram surpreendentemente francas. Será, perguntou-se um deles, que a arte realmente constitui uma zona livre de censura por aqui?

Esse pensamento reapareceu durante a apresentação de uma nova ópera do compositor cubano Roberto Valera, chamada "Cubanacán", baseada na vida do arquiteto cubano Ricardo Porro. Em 1961, Fidel Castro o encarregou de projetar e construir a sede das Escolas Nacionais de Artes, que, com suas cúpulas chamativas e linhas sinuosas, continua sendo uma obra impactante. Cinco anos mais tarde, ele precisou fugir. Suas estruturas haviam sido consideradas idiossincráticas demais.

A ópera também parece contrariar as normas culturais oficiais. Seu herói é um refugiado da revolução, e a obra zomba de Che Guevara e Fidel Castro. No entanto, as piadas são brandas. Porro, que morreu no ano passado, acabou sendo convidado a voltar à ilha. Ao permitir que sua história fosse contada, o governo assume um estratégico verniz de tolerância.

Porém, uma apresentação bastante diferente foi censurada. Ela vinha acontecendo diariamente desde que a artista cubana Tania Bruguera, que tem carreira internacional, voltou ao país, em dezembro. Sua chegada coincidiu com o anúncio da aproximação política entre Cuba e os EUA. Estava implícito que o governo de Cuba gradualmente abrandaria a repressão a dissidências.

Bruguera quis colocar isso à prova. Ela já apresentara anteriormente a performance, intitulada "O Sussurro de Tatlin n°6", na Bienal de Havana de 2009 e no exterior. Nesse trabalho, ela monta um microfone e convida qualquer um para falar, sem censura, durante um minuto. Desta vez, ela planejava realizar a performance na praça da Revolução, local politicamente sagrado para o regime cubano.

A polícia rapidamente a deteve sob a acusação de perturbar a ordem pública. O processo contra ela não avançou desde então. Em junho, a artista foi informada de que poderia deixar o país, mas seu caso poderia ser reaberto na sua ausência, e ela poderia ser sentenciada ao exílio.

Apesar da indefinição jurídica, Bruguera não se calou.

Coincidindo com a abertura da Bienal, ela reuniu voluntários para uma leitura ao vivo do livro "As Origens do Totalitarismo" (1951), de Hannah Arendt, na casa dela.

Enquanto a leitura acontecia, operários do governo chegaram com britadeiras para fazer uma obra na rua, sufocando as vozes. Depois que a leitura terminou, ela saiu de casa, com o livro sob o braço, quando foi abordada pela polícia, jogada dentro de um carro e levada para horas de interrogatório.

Independentemente do resultado final, a performance dela deve ser vista como um sucesso, porque não tem como ser interrompida. Cada vez que a polícia a detém ou a confronta de alguma forma, está desempenhando um papel. Cada obstáculo jurídico colocado no caminho de Bruguera prolonga a duração da performance, adensa a trama, ensombrece o ambiente e expõe realidades que os governistas cubanos, incluindo membros do "establishment" artístico local, prefeririam que não levássemos em conta.

A 12a Bienal de Havana nos ensina muito sobre o que é a arte, onde ela pode existir e para que serve. Com a performance de Bruguera, estamos aprendendo o que a arte é capaz de fazer -coisas arriscadas e reveladoras-, tanto para o artista quanto para o público. Também é possível que essa edição da Bienal seja lembrada, acima de tudo, por essa performance ainda em andamento.


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