Folha de S. Paulo


Em 'O Gigante Enterrado', Kazuo Ishiguro explora o esquecimento

Andrew Testa/The New York Times
O escritor Kazuo Ishiguro
O escritor Kazuo Ishiguro

Kazuo Ishiguro combina a entrevista e manda avisar que devo ligar pontualmente no horário acertado, pois não terei chance de remarcar. Fico com vontade de responder: "eu sei, eu li os livros do senhor".

Seria exótico pensar na Etsuko, de "Uma Pálida Visão dos Montes", se atrasando para o que quer que fosse; assim como seria cômico imaginar esse escritor nipo-britânico —uma sobreposição de neuroses em forma de nacionalidade— esperando junto ao telefone enquanto a jornalista —baiana— se enrola com os códigos da chamada internacional.

Se você não leu "Os Vestígios do Dia", obra que consagrou Ishiguro, basta pensar em Carson, o mordomo impecável do seriado Downton Abbey, claramente baseado em seu protagonista. Se (ainda) não leu "O Gigante Enterrado", lançado este mês no Brasil, basta pensar em como seria a literatura de fantasia caso fosse abordada por um grande artista com pouquíssima bagagem no gênero.

Em "O Gigante Enterrado", Ishiguro revisita temas típicos de sua obra como memória, dignidade e o papel dos personagens na história sob o ponto de vista de um casal em busca de um filho de que mal se lembram numa era pós-arturiana repleta de ogros, duendes e dragões. Em uma Grã-Bretanha vagamente histórica, arrasada por conflitos entre bretões e saxões, os protagonistas Axl e Beatrice precisam combater um dragão para acabar com a névoa de esquecimento que se abate sobre a região. Fazer isso, no entanto, é desenterrar o passado, lembrar do que recalcaram a fim de seguir em frente.

Em entrevista à Folha, o autor explica que o livro é sobre "as coisas que escolhermos esquecer na hora de formar uma sociedade, ou de construir um relacionamento longo. Não existe relação humana possível que não tenha gigantes enterrados no quintal", diz ele.

Falando assim pode parecer um livro repleto de ação, mas não é o caso —isso sim seria uma guinada na carreira de Ishiguro, muito mais do que os dragões. A ação é refreada tanto pela distância entre o tempo da narrativa e os acontecimentos narrados quanto pelo tom contido do narrador. Esse, por sinal, é o primeiro romance de Ishiguro escrito em terceira pessoa. "Eu pensei inicialmente em escrever em primeira, na voz de Axl, mas razões práticas me dissuadiram. Seria difícil demais ter um narrador que não lembrasse dos acontecimentos, e eu queria passar essa ideia de um casal que funciona como um personagem unitário", explica o escritor.

Outro bom motivo explica a escolha do narrador em terceira pessoa: ele funciona como uma espécie de guia turístico que introduz o leitor a essa Grã-Bretanha de contornos fictícios de cerca de 1.500 anos atrás.

Faz dez anos que Ishiguro não publica um romance. Nesse hiato —o maior de sua carreira—, escreveu um livro de contos ("Nocturnes", sobre músicos, profissão que chegou a cogitar para si). "O Gigante Enterrado" está longe de ser seu melhor trabalho —se opinião de jornalista ainda interessa a alguém, seriam "Os Vestígios do Dia", seguido de longe por "Não Me Abandone Jamais"—, mas a obra média de Ishiguro paira acima de quase tudo que seus contemporâneos ingleses têm produzido.

PERSONAGENS CONSERVADORES

Ishiguro gosta mesmo é de colocar personagens conservadores em situações de mudança. Em seu livro mais famoso, um mordomo à moda antiga se ressente pela decadência da aristocracia britânica no entreguerras e pelo fato de ter um novo patrão que, além de americano e sem pedigree, não dá a mínima para o emaranhado de rituais que orientam sua vida.

Stevens elabora detidamente sobre a ética e a conduta de sua profissão, sobre como o mordomo precisa refletir a dignidade do patrão. No entanto, conforme ele avança em suas divagações sobre a postura do mordomo, fica claro que este deve ser uma versão aperfeiçoada de seu patrão, uma espécie de doppelgänger melhorado. Elevado por manter um comportamento ainda mais irretocável, rebaixado por sua hierarquia social.

Um movimento semelhante ocorre com os clones doadores de órgãos de "Não Me Abandone Jamais". Criados para se sacrificarem por seus originais, os clones devem se abster de cigarros e bebidas e são lembrados constantemente de que os cuidados com a saúde, importantes para todos, são ainda mais importantes no caso deles, que precisam fornecer bons órgãos. Assim como o mordomo, os clones enxergam uma dignidade em sua atividade e defendem a ordem social que os coloca nessa posição.

Em ambos os livros, os personagens vivem um momento de transição com consequências diretas sobre o modo de vida que eles vinham defendendo, apegam-se a instituições em declínio e se ressentem por seu naufrágio.

Uma ruptura interessante deste novo livro em relação aos trabalhos anteriores de Ishiguro é que "O Gigante Enterrado" trabalha a temática da viagem de um jeito muito mais clássico do que outros livros do autor porque aqui a viagem de fato envolve uma transformação. O tema das viagens, um dos grandes temas da literatura, aparece de cabeça para baixo nas obras anteriores de Ishiguro. Se a viagem clássica implica uma transformação dos personagens, nas viagens de Ishiguro os personagens são reprimidos demais para permitir uma alteração em seu caráter ou forma de pensar.

Em alguns casos, a viagem chega a funcionar como uma prova dos nove para ver se mesmo diante da forte experiência das viagens os personagens se mantém os mesmos. No caso de Stevens, tem grande importância a ideia da imobilidade social porque, no mundo que ele observa nascer, os argentários e arrivistas, como seu patrão americano, vão tomando o lugar que era da permanência. O mal-estar de Stevens, expresso em seus "erros insignificantes", talvez venha dessa vertigem das mudanças.

A graça de Ishiguro é ler nas entrelinhas o que os personagens não tiveram coragem de dizer —e o que o autor não quis entregar de bandeja. Como disse o crítico Mark Kamine, "raros escritores ousam revelar tão pouco do que querem transmitir quanto Ishiguro".

O Gigante Enterrado

Autor Kazuo Ishiguro
Tradução Sonia Moreira
Editora Companhia das Letras
Quanto R$ 40 (396 págs.)

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Leon Neal - 10.out.2005/AFP
Kazuo Ishiguro posa com o livro
Kazuo Ishiguro posa com o livro "Não Me Abandone Jamais", para o Booker Prize, maior prêmio de literatura do Reino Unido

Leia a seguir a entrevista com o autor:

Folha - Até aqui, todos os seus romances trabalhavam com narradores em primeira pessoa, mas nesse novo livro você usa um narrador em terceira pessoa. De onde veio essa decisão e no que ela implica?

Kazuo Ishiguro - Eu pensei inicialmente em escrever em primeira, na voz de Axl, mas razões práticas me dissuadiram. Seria difícil demais ter um narrador que não lembrasse dos acontecimentos, e eu queria passar essa ideia de um casal que funciona como um personagem unitário

Além disso, tem a questão de ser uma terra estranha (ou tornada estranha). Eu precisava de uma espécie de guia turístico que guiasse o leitor. Na verdade, eu precisava de um álibi para ser didático em alguns momentos.

Quais foram suas referências para escrever esse livro? Você gosta do gênero fantasia?

Não é um gênero muito familiar para mim, na verdade. Acho que usei mais filmes de bangue-bangue do que livros de fantasia como referência, porque não tinha mesmo essa bagagem, e decidi que o melhor que eu poderia trazer seria um olhar externo ao gênero. Se fizesse pesquisas, teria o risco de me contaminar demais para ser um intruso, mas de não absorver o suficiente para ser um autor desse gênero. Então decidi usar o que já tinha dentro de mim: filmes de faroeste, criaturas mitológicas japonesas.

Amit Chaudhuri disse que seus primeiros romances eram sobre "a vergonha de estar do lado errado da história". Você concorda com essa afirmação? E "O Gigante Enterrado", sobre o que é?

Concordo, de certo modo. São sobre personagens que têm uma dor muito grande porque não tiveram a postura que achavam que deveriam ter tido diante dos acontecimentos. São personagens aquém de seu momento histórico, se podemos falar assim.

Já "O Gigante Enterrado" é sobre as coisas que escolhermos esquecer na hora de formar uma sociedade, ou de construir um relacionamento longo. Não existe relação humana possível que não tenha gigantes enterrados no quintal

Dizem que o senhor escreveu "Os Vestígios do Dia" em um mês, o que é não apenas impressionante, mas bastante deprimente para o resto da humanidade. É verdade?

Levei dois anos para escrever esse livro, que é mais ou menos o tempo que levei para cada um dos outros. O boato surgiu no fim do ano passado, quando contei que faço retiros de um mês em que me dedico inteiramente ao livro, com horários muito rígidos todos os dias da semana, sem contato com e-mails e telefone. Esse retiro me ajuda muito e costumo sair dele com uma primeira versão do livro.

Basicamente, meu processo é o seguinte: penso muito no assunto, depois pesquiso, depois faço esse retiro —quando posso, e quando Lorna [a mulher do escritor] pode assumir minha parte das tarefas domésticas por um mês—, daí tenho uma base na qual trabalhar pelo ano seguinte.

Mas quando um escritor diz que sai de uma caverna com um primeiro rascunho, é irresistível dizerem que ele saiu com o livro. Escrever, como sabemos, é reescrever.


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