"Um vermelho vivo pode acelerar o coração, causar dor ou até repulsa, enquanto o azul leva à paralisia. O amarelo vibrante agride o olho do jeito que o zunido estridente de uma trombeta machuca os ouvidos. A cor exerce influência direta sobre a alma, causando uma vibração emocional com seu poder psíquico."
Numa linguagem entre o científico e o esotérico, Wassily Kandinsky tentava descrever o impacto das cores sobre os olhos e o corpo de quem visse seus quadros. Lido de forma literal, seu ensaio "Do Espiritual na Arte", escrito em 1912, descreve obras que seriam explosões de farpas, raios e vozes graves e agudas.
Toda essa energia ou dormência represada nas cores e nas formas geométricas falava mais alto que qualquer representação do mundo real nas telas do artista russo, o que explica por que Kandinsky, morto aos 77, em 1944, tenha abolido a figuração para construir um mundo abstrato.
Seu universo de cores e formas puras, entre linhas, triângulos, círculos, garras e garranchos, ressurge em toda a sua potência cromática –e sonora– numa mostra com 150 obras do artista e de seus contemporâneos no Centro Cultural Banco do Brasil paulistano.
Depois de uma turnê que passou por Brasília, Rio e Belo Horizonte, a exposição deve bater a marca de 1 milhão de visitantes com essa última parada –uma multidão atraída por sua leveza ao mesmo tempo estranha e desafiadora.
Kandinsky é pop. Não no sentido Coca-Cola de um Andy Warhol, mas porque se firmou como uma voz singular num terreno dividido entre os cubistas de Paris e os construtivistas revolucionários aquartelados em Moscou.
Ou seja, no papel de paladino da abstração na era das vanguardas que marcaram o início do século 20, Kandinsky rejeitava a ideia de retratar o mundo em cubos fragmentados, que considerava um retrocesso formalista, ao mesmo tempo em que se opunha à instrumentalização da arte pela política na Revolução Russa. Queria uma arte pura.
Em Munique, onde viveu boa parte da vida, Kandinsky foi uma das figuras mais fortes do Cavaleiro Azul, movimento de artistas que pensava a arte não como representação, mas como manifestação de impulsos espirituais.
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Nesse sentido, ele abandonou suas representações mais realistas de casinhas, riachos e igrejas, que pintou ainda influenciado pelos impressionistas com cores estridentes e densas camadas de tinta, para adentrar um terreno menos apegado aos contornos do mundo real.
"Sua obra inaugura o caminho para a arte abstrata", observa Evgenia Petrova, do Museu Estatal Russo, em São Petersburgo, que emprestou obras para a exposição. "É o lirismo desvinculado da representação, uma obra voltada para a subjetividade e o mundo interior do ser humano."
JAZZ E FÚRIA
Uma pintura de são Jorge, tela de 1911, inaugura essa narrativa na mostra paulistana. É o primeiro quadro a parecer um borrão ritmado de cores mais e menos brilhantes. Só olhando com atenção é possível decifrar ali a silhueta de um homem a cavalo, empunhando uma lança e o dragão encolhido aos seus pés.
Mais adiante, Kandinsky entrou na fase de fato musical de sua obra. É uma influência nítida do compositor Arnold Schönberg, que conheceu no mesmo ano em que pintou "São Jorge", abrindo caminho para as suas séries de "Composições" e "Improvisações".
"No encontro com Schönberg, Kandinsky teve certeza de que cada nota musical era ligada a uma cor", diz Petrova. "Do mesmo jeito, ligou as cores aos estados de ânimo."
Famoso por enxergar suas telas como sinfonias abstratas, Kandinsky também seria revisto décadas depois à luz do jazz nos Estados Unidos, outro gênero ancorado no improviso –equivalente sonoro aos respingos erráticos de Jackson Pollock sobre a tela.
Essa fúria, no entanto, passa ao largo de Kandinsky. Mais serenos, os azuis –órgão, flauta, violoncelo– aparecem com maior frequência em suas telas do que os vermelhos –violino, tuba–, embora equilibrados por alguns amarelos –trombetas agudas– num universo quase sempre todo feito de branco –o silêncio.
WASSILY KANDINSKY
QUANDO de qua. a seg., das 9h às 21h; até 28/9
ONDE CCBB-SP, r. Álvares Penteado, 112, tel. (11) 3113-3651
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