Folha de S. Paulo


Produtores e guarda-costas relembram passagem de Nina Simone pelo Brasil

Parte de São Paulo experimentou um fuso horário diferente quando Nina Simone (1933-2003) esteve na cidade, no dia 28 de julho de 1997.

Às 16h03, quando a artista tocou a primeira nota no piano na praça da Paz, no parque Ibirapuera, ela acreditava que o relógio marcava, na verdade, 17h.

Isso porque, para garantir que a cantora e pianista fizesse o show, a produção precisou enganá-la sobre o horário da apresentação, inicialmente acertado para as 11h.

"Pouco antes de ela embarcar, os empresários falaram que ela não faria o show de manhã, não importava o contrato: 'Se insistirem, ela não sai da França'. Às 17h era o horário mais cedo que eles poderiam aceitar."
Segundo o relato de Edgard Radesca, proprietário da casa de shows Bourbon Street e responsável por articular a vinda de Nina Simone ao país, a artista fez o tempo passar em seu ritmo. Ou quase.

No trajeto entre o antigo hotel Meliá, na av. Sena Madureira, e o Ibirapuera, todos os relógios -do segurança, do hotel, do motorista, dos produtores- foram adiantados em uma hora, e todos os relógios de rua no caminho
foram driblados.

ESFINGE

Para o alívio de Luís Avelima, então coordenador dos shows que aconteciam no Ibirapuera, "deu tudo certo, foi uma maravilha". "Fico até hoje impressionado com a firmeza dela ao piano. Seus dedos [nas teclas] eram primorosos."

Sentimento semelhante teve a produtora Monique Gardenberg, responsável pela primeira turnê da cantora e pianista no Brasil, no festival Free Jazz de 1988: "Nina Simone parecia uma esfinge em que o enigma era ela própria".

"Sua expressão era vazia, como se dopada. Estava imóvel e assustadoramente ausente. E nesse estado catatônico a conduzimos ao palco, convencidos de que aquela noite seria um enorme fracasso", relatou ela à Folha, por e-mail. "Diante do piano, sua alma foi tomando seu corpo e ela nos presenteou com um show arrebatador."

Essas são algumas das memórias que a reportagem ouviu para reconstituir a trajetória no Brasil de Nina Simone, cuja biografia acaba de virar tema do documentário "What Happened, Miss Simone?", em exibição na Netflix desde sexta-feira (26).

Dirigido por Liz Garbus, o filme revela a fragilidade e a força de Nina Simone, que usou sua voz em músicas como "I Got no/I Got Life" e "Mississippi Goddam" como arma na luta por direitos civis, nos anos 1960.

Depoimentos, áudios inéditos e trechos do seu diário revelam os abusos que sofreu durante toda a vida, que culminaram no diagnóstico de transtorno bipolar, no início dos anos 1980.

Os rastros que a artista deixou no Brasil revelam a complexidade de sua personalidade. Em poucos minutos, ela deixava de lado a mulher que agradecia as flores de Edgard Radesca com um sorriso e virava alguém que "falava cobras e lagartos" com a equipe, segundo o produtor.

Das três turnês pelo país -em 1988, em 1997 e em 2000 (veja ao lado)-, poucas pessoas mantiveram tanta intimidade com "doctor" Nina, que passou a exigir a formalidade de tratamento após receber o título de doutora honoris causa, como o segurança do Bourbon Murilo Pereira, 60 anos.

(Talvez só o seu colega da época, o motorista Ricardo -de quem ninguém lembra o sobrenome-, que sumiu do mapa desde que foi embora com Nina para o sul da França, em 2000, após os shows no Brasil)

Ex-militar, Pereira a acompanhou nas duas últimas vezes em que ela veio ao Brasil. Chegou a ficar três dias seguidos sentado na porta de seu quarto, em abril de 2000, pois ela temia que alguém o invadisse. "Ela tinha paranoia de estar sozinha, acordava no meio da noite e me chamava."

O guarda-costas -um homem robusto- caiu nas graças de Nina, que chegou a flertar com ele, certa vez, sem sucesso. "Disse que era casado."

Pereira ganhou respeito atendendo os caprichos da artista, em cujo vocabulário não existia, diz, a palavra "não". Em uma tarde de calor em 2000, depois de voltar da visita ao Cristo Redentor, ela quis se refrescar na piscina do hotel. Não ter roupa de banho, conta o segurança, não a deteve: tirou o vestido e nadou assim mesmo, nua.

Aonde fosse com Nina, levava a tiracolo uma frasqueira com uma garrafa de champanhe Cristal -na época raríssima, hoje custa cerca de R$ 1.200. Ela bebia o espumante em taças durante passagens de som.

Certa noite, ela saiu com o guarda-costas para conhecer o extinto Consulado do Chope, do cantor Netinho de Paula, em São Paulo. Adorou a noite de samba e pagode, assim como a tradicional feijoada do Bolinha, no Itaim Bibi -comeu três vezes, diz Pereira.


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