Folha de S. Paulo


Em novo livro, Luiz Felipe Pondé cria 11º mandamento bíblico

Em 128 páginas, uma menção aos "jantares inteligentes" e uma crítica às feministas. O leitor das colunas de Luiz Felipe Pondé, 56, na Folha encontrará poucas das provocações habituais do filósofo em seu novo livro, "Os Dez Mandamentos (+ Um)", publicado pelo selo editorial Três Estrelas, do Grupo Folha.

Desta vez, a tarefa a que Pondé se dedica é mais ambiciosa: além de abordar os problemas da modernidade à luz dos Dez Mandamentos, sugerir um 11º –"Terás esperança no mundo"–, o que chama de "pequeno exercício de arrogância".

"É como querer fazer uma errata para a 'Ilíada'!", diz o filósofo, que lança mão de um vasto elenco de autores –de santos como Agostinho a ateus como Freud– para pôr o decálogo bíblico em diálogo com o mundo atual.

Fabio Braga/Folhapress
O colunista da *Folha* Luiz Felipe Pondé
O colunista da Folha Luiz Felipe Pondé

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Folha - O que o atraiu para a "hipótese elegante" de Deus e para os Dez Mandamentos?

Luiz Felipe Pondé - Religiões são experiências constitutivas da ancestralidade, e alguns têm uma vida rica por causa delas. Ateus com pouco repertório tendem a reduzir o espectro do que significa a vida religiosa aos seus aspectos negativos. A ideia de um Ser eterno, absoluto, fora da linguagem, dono do ser e misericordioso torna o Universo quase uma obra de arte.

No entanto, também penso que a versão darwinista da vida tem beleza -somos uma espécie de ópera do pó que tomou consciência de si.

As tradições hebraica, grega e cristã são minhas especializações em filosofia da religião porque são fundacionais da cultura ocidental. Cresci nelas, são parte de mim.

O "Pondé colunista" aparece relativamente pouco no livro.

É meu lado teológico mais denso, sem os hermetismos da academia. A coluna me ensinou a escrever de forma mais direta. Acho importante ver meus livros como parceiros da atividade de colunista.

Por que outro mandamento?

A proposta do livro desde o início foi fazer um 11º, como exercício filosófico e teológico. O conteúdo dele apareceu à medida que fui escrevendo.

Sou filho da herança melancólica em filosofia; pessoas como eu (ou Kafka, em quem me apoio no 11º mandamento) servem de sinal de que a esperança no mundo [tema do 11º] é quase um milagre.

Questões como esperança, gratidão e generosidade são os grandes mistérios do mundo. Antes de tudo, porque o que mais se vende em filosofia, teologia e ciências sociais hoje são falsas esperanças.

Freud e Nietzsche contestam os fundamentos da religião. Em que eles, e outros depois, erraram na crítica às religiões?

Considero as críticas desses grandes autores consistentes em muitos aspectos.

Mas dizer que a religião é neurose obsessiva, apesar de verdade no sentido psíquico, não dialoga com concepções de natureza humana sólidas como em santo Agostinho ou Pascal, por exemplo. Reduzir a religião ao fenômeno psíquico é como reduzir uma obra literária aos supostos aspectos psicológicos do autor.

A ilusão de Freud é achar que, sendo ateu e identificando aspectos negativos nas religiões, ele esgotara a questão.

Seu livro mostra que, na Bíblia hebraica, os "eleitos por Deus" são os mais castigados. Como espera que essas ideias ressoem num mundo em que a noção de "eleito por Deus" é associada à prosperidade?

Como um gabarito de prova que mostra que [os que pensam assim] estão reprovados em teologia hebraica.

Como é, para um pessimista sem fé, o exercício de "pôr sua esperança no Eterno"? É melhor ser um "pessimista corajoso" que um otimista?

O otimismo é suspeito; não à toa, serve para autoajuda e teologias da prosperidade. Com isso não quero dizer que ser pessimista é "chique", inclusive porque não é escolha, como quase tudo que importa.

Não coloco minha esperança no Eterno, mas entendo quando os cristãos afirmam que a esperança seja uma virtude teologal. E julgo a coragem uma das maiores virtudes bíblicas e humanas.

A verdadeira coragem é uma forma profunda de generosidade com a vida e o mundo. Como toda virtude, a esperança só brota em terreno que lhe é hostil. O Deus de Israel não gosta de covardes.

OS DEZ MANDAMENTOS (+ UM)
AUTOR Luiz Felipe Pondé
EDITORA Três Estrelas
QUANTO R$ 29,90 (128 págs.)
LANÇAMENTO 30/6, às 18h30, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, av. Paulista, 2.073

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MOISÉS RELOADED
Veja os Dez Mandamentos comentados por Luiz Felipe Pondé

1. AMARÁS TEU DEUS ACIMA DE TODAS AS COISAS
"Qual é o erro do idólatra? É adorar sua própria capacidade, esquecendo que somos seres insuficientes, isto é, que não detemos em nós mesmos as condições para superar a morte ou encontrar o sentido da vida."

2. NÃO INVOCARÁS O SANTO NOME DE DEUS EM VÃO
"[O mandamento diz] para não levarmos uma vida vã (...). Uma vida vã é aquela que toma a si mesma como centro de gravidade. É ridícula, inclusive, porque logo irá se desfazer em poeira."

3. GUARDARÁS DOMINGOS E DIAS DE FESTA
"Os momentos sagrados interrompem o fluxo do cotidiano. (...) Retirar-se do trabalho diário para orar, refletir ou simplesmente não fazer nada cria as condições para um modo diferente de estar na vida."

4. HONRARÁS PAI E MÃE
"Homenagem (...) a todos aqueles que morreram para que pudéssemos estar vivos hoje. Hebreus crentes e darwinistas descrentes (como eu) reúnem-se nesse mandamento para louvar a coragem de nossos ancestrais."

5. NÃO MATARÁS
"Vigora apenas para nós, humanos, pois Deus mata, e aos montes. (...) A razão teológica dessa proibição (...) é o fato de que só Deus é dono da vida (e de tudo o mais). (...) Essa liberdade de Deus é assustadora para nós."

6. NÃO COMETERÁS ADULTÉRIO
"Não devemos adulterar de forma mais essencial e geral. O cuidado [do mandamento] é com a pureza da vida (...) Tem pouco a ver com a ideia de pessoa 'santinha'. O santo verdadeiro é um especialista no Mal."

7. NÃO ROUBARÁS
"Querer ser dono do Ser é já uma forma de roubo. A Queda do Paraíso (...) é resultado da tendência do homem a querer ser dono de tudo. O mandamento nos leva a compreender nossa condição de guardiães do mundo."

8. NÃO LEVANTARÁS FALSOS TESTEMUNHOS
"Em uma sociedade como a contemporânea, saturada de relativismo, haveria algum impedimento para mentirmos a respeito dos outros (o falso testemunho em si)? (...) O mundo não sobrevive à negação da verdade pura e simples."

9. NÃO DESEJARÁS A MULHER DO PRÓXIMO
"Parte da vida em sociedade depende da capacidade (...) de não mexer com as mulheres 'que já têm dono'. O amor e o desejo, entretanto, não respeitam limites legais. Até Deus (...) teve de se preocupar com o gosto de mulher."

10. NÃO COBIÇARÁS AS COISAS ALHEIAS
"Respeitar o valor daquilo que pertence ao outro é entender que o fruto do trabalho desse outro é o rastro que ele deixa em sua vida. Cobiçar os bens do outro (...) é ser incapaz de produzir valores concretos no mundo."

+ 1. TERÁS ESPERANÇA NO MUNDO
"Existe um número infinito de razões para descrermos do mundo. Por isso mesmo, um 11º mandamento deve ser um alerta contra tal blasfêmia, antes de tudo."


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