Folha de S. Paulo


Bruna Marquezine e ator de 'Cidade de Deus' contam dores e delícias da carreira infantil

Para Felipe Paulino, 22, foi um tiro no pé. Fernando Meirelles selecionou o aluno de teatro no morro do Vidigal, no Rio, para "Cidade de Deus" (2002). No filme, Zé Pequeno o forçava a escolher: queria bala na mão ou no pé? Levou no último. Tinha oito anos.

Hoje Felipe diz que, se tivesse filho, acharia "absurdo" deixá-lo atuar na "cena mais violenta da história do cinema" –impressão dele e do site americano Pop Crunch, que pôs o "take" brasileiro à frente, por exemplo, do estupro de "Laranja Mecânica" e elogiou a "performance convincente" do ator mirim.

Só que, segundo Felipe, o "medo era bem real", induzido pela preparadora de elenco Fátima Toledo.

Para Bruna Marquezine, 19, dia de set era melhor que recreio. "Yes, hoje tem gravação!", recorda a experiência de acordar e ir trabalhar na TV desde, bom, sempre. Estreou como a Salete da novela "Mulheres Apaixonadas" (2003), na Globo. Tinha sete anos.

Lembra de chorar ao se ver no "Fantástico": "Me senti tão importante". Questionada se "hábitos narcisistas" teriam sido nutridos na infância, nega: "Todo ator é narcisista". Sempre tirou notas boas e, se os pais a tivessem proibido de se manifestar artisticamente, diz que teria enlouquecido.

Na semana passada, Felipe e Bruna contaram suas histórias para um público de advogados, promotores e juízes, em seminário no TRT (Tribunal Regional do Trabalho) da 2ª Região (São Paulo).

Todos concordam que falta regulamentar a legislação sobre o tema. O problema é como. Não há consenso sobre em que casos a carreira infantojuvenil é danosa.

A jornada pode diminuir o tempo para brincar, se estender até tarde da noite, prejudicar os estudos e render contratos abusivos para a garotada –que, na prática, "não pode ter dor de barriga" ou apenas "não estar a fim de trabalhar no dia", diz a advogada Sandra Cavalcante, autora de "Trabalho Infantil Artístico - do Deslumbramento à Ilegalidade" (LTr Editora).

O ofício às vezes requer aparato psicológico que nem veterano tem. No seminário do TRT foi relatado o caso de uma mãe que expôs no Facebook o drama de uma filha atriz (o nome não foi citado): fã-clubes sorteavam seu celular, e ela já recebeu mais de mil recados por dia no Whatsapp –até de meninas ameaçando se cortar se ela não ligasse de volta.

Bruna diz que sofreu experiências parecidas. Mas não se queixa de crescer na frente de câmeras. Uma assessora da Globo não permitiu que falasse quantas horas ficava no set, e a atriz diz à Folha que a "sexualização precoce" veio "só depois" –menções a seu "sex appeal" pipocam desde a adolescência, por papéis como a funkeira Lurdinha, que amava tomar banho na laje de biquíni em "Salve Jorge" (2012).

TEORIA E PRÁTICA

Está na Constituição: qualquer trabalho é proibido antes dos 16 anos, exceto na condição de aprendiz, a partir de 14. A regra permite exceções. A Organização Internacional do Trabalho autoriza a profissionalização "excepcional" do menor. O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) condiciona esse trabalho à concessão de alvará judicial –em 2014, foram 83 autorizações, sete negativas e 43 ações sem decisão final no TRT-2.

"A prática venceu a norma", diz Alexandre Raposo, vice-presidente da RedeTV!, que participou do evento no TRT, onde puxou no Judiciário um coro de Gonzaguinha ("eu fico com a pureza da resposta das crianças...").

Raposo questionou como seria uma família na TV sem criança e que graça teria recriar um "Sítio do Picapau Amarelo" todo sem elas.

Para Yudi Tamashiro, 22, é importante que a criançada se veja na tela, ou a referência "vira o maluco que cata mulher na novela". De 2005 a 2012, ele apresentou no SBT o "Bom Dia & Companhia", que distribuía PlayStations de prêmio.

A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão move ação no Supremo Tribunal Federal questionando por que a Justiça do Trabalho, e não a Justiça comum, tem poder de decisão. Argumenta que a causa é "eminentemente civil, ligada à proteção integral da criança e adolescente". Do lado do Judiciário, fala-se em "lobby" para afrouxar o cerco sobre o tema.

"É impossível deixar de lado que as produções artísticas são feitas para auferir lucro", diz o deputado estadual Carlos Bezerra Júnior (PSDB-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo.

TRAUMA

Lucro não investido em seu futuro, diz o Felipe de "Cidade de Deus". Ele relata que o pai gastou seus R$ 7.000. Muitos alvarás exigem que um percentual do cachê vá para uma conta poupança do menor.

Fora o trauma. Segundo ele recorda, Fátima Toledo pediu que Leandro Firmino (Zé Pequeno) lhe desse um susto com uma arma num quarto escuro. Também teria dito para pensar na mãe se afogando.

Famosa pelo método que extrai reações viscerais do ator, a preparadora afirma que "nada disso aconteceu" e que Felipe pode ter "criado uma fantasia". Diz que, ao lhe mostrar uma arma e indagar se sabia o que era, ouviu: "Sei, e essa é de brinquedo".

Para dar veracidade à cena, conta, pediu que ele imaginasse uma dor forte (como a de dente) se movendo para o pé.

"Talvez Felipe tenha misturado realidade com ficção, pois sua performance foi extraordinária", afirma Meirelles, o diretor. "Assim que cortei, fui correndo abraçá-lo de tão impressionado que fiquei."

Unir infância e labor dá trabalho, mas um final feliz é possível, diz a advogada Cavalcante. Veja Danny Lloyd: aos seis anos, Stanley Kubrick o escalou para ser o menino do velocípede que, em "O Iluminado", repetia "redrum" –"murder" (assassinato) ao contrário.

A equipe o blindou, de modo que filmasse cenas separadamente e nunca sacasse que estrelava um filme barra pesadíssima de terror. Aos 13, ele assistiu ao "Iluminado" pela primeira vez–uma versão "light". A íntegra, só aos 17.


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